Congresso em Foco

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Cem dias após o início do segundo mandato de Donald Trump, a economia americana vive um paradoxo: um governo autoritário, fiscalmente irresponsável e institucionalmente instável continua a contar com o beneplácito ou a conivência? do mercado financeiro. Para entender como chegamos até aqui, conversei com Ana Carolina Mallmann, que desmontou, com lucidez cortante, as contradições do chamado Trumponomics 2.0. A crítica da Ana parte de um ponto central: a ilusão do mercado sobre sua própria racionalidade. “Quando os mercados celebram a desregulamentação, os cortes de impostos e o discurso “anti-Woke”, ignorando os sinais claros de autoritarismo e protecionismo, o que se vê é uma adesão afetiva, não técnica”*. “O mercado acha que é racional, mas age de forma absolutamente emocional. A adoração pelo Trump não é técnica, é emocional. A teoria do homo economicus, o agente racional que toma decisões maximizando utilidades, é desmentida na prática por um comportamento marcado por medo, desejo e impulsos. Até uma compra de supermercado é emocional, imagine a política monetária”, disse Ana.

Apesar dos sinais de crise, Trump mantém apoio do mercado financeiro com promessas de cortes fiscais e desregulaçãof

Apesar dos sinais de crise, Trump mantém apoio do mercado financeiro com promessas de cortes fiscais e desregulaçãofFlickr/The White House

A adesão dos mercados à figura de Trump é, portanto, menos cálculo e mais transferência psíquica. Ana analisou: “A massa é infantil, frágil, e se encanta com a figura do pai forte. Freud explica isto no Psicologia das massas e análise do eu”. Foi aí que eu mesma observei: “É isso que me choca. A adesão cega do mercado. Sabemos que os eleitores são, em grande parte, movidos por suas emoções, mas ver gente do financeiro, com formação técnica, agir de forma tão emocional indica que a premissa de identificação emocional suplantar a racionalidade vale tanto para o eleitor médio, quanto para o analista da Faria Lima ou de Wall Street.” A mitificação de Trump como gênio dos negócios, como disse Ana, é uma construção fetichizada: “Ele não é um empresário bem-sucedido, tem um histórico de falências, fraudes e instabilidade.” Concordei imediatamente: “Mas ele tem um talento real: explorar as falhas do sistema. Sem qualquer limite ético ou moral. No primeiro mandato, havia freios. Agora, ele governa seguido de secretários cegos, incompetentes, mas leais. É um tipo de autoritarismo funcional.” Esse talento, perigoso em si, torna-se destrutivo no comando de um Estado, pontuou Ana.

O cenário fiscal, por sua vez, é alarmante. O principal problema que Trump enfrenta neste segundo mandato é que a dívida pública está muito maior do que há oito anos. Já ultrapassa 100% do PIB, como era no fim da Segunda Guerra Mundial. E os pagamentos de juros estão consumindo uma fatia crescente do orçamento federal. Na verdade, os juros já superam o orçamento de defesa. “Os Estados Unidos têm a maior dívida pública do planeta, vencendo em sua maioria nos próximos quatro anos. E ninguém fala disso”, observou Ana. Perguntei por que, e ela respondeu: “A onipotência do dólar. Eles imprimem a moeda que o mundo inteiro aceita. Mas isso tem limite. O que Trump está fazendo é comprometer a previsibilidade econômica do país.” Os dados recentes confirmam a gravidade: o PIB real caiu 0,3% no primeiro trimestre de 2025 (BEA/Fed de Atlanta), a inflação subiu de 2,4% para 3,6% e o consumo das famílias despencou de 4% para 1,8%. “É estagflação com pitadas de recessão induzida”, disse Ana. Krugman já batizou: “Recessão autoinduzida por Trump.”

Nos EUA de Trump, a responsabilidade fiscal cede espaço a slogans como “Drill, baby, drill”. E o custo do plano “Make America Prosperous”? Trump quer aprovar um novo pacote fiscal de aproximadamente 4,5 trilhões de dólares ao longo de dez anos. O plano inclui a redução da alíquota do imposto corporativo de 21% para 15%, a eliminação de impostos sobre gorjetas, e deduções fiscais para setores estratégicos como automóveis e P&D, com cortes previstos em programas sociais como o Medicaid. Comentei com Ana: “Isso beneficiaria 0,1% dos mais ricos, que receberiam 23,5% dos benefícios dos cortes fiscais, enquanto os mais pobres podem até ver aumento de impostos”. “Os mais ricos têm escola privada. Não vai fazer diferença para eles.” Ela completou: “Não faz diferença para eles, mas para a sociedade, sim. Aumenta a discrepância social, onde o rico fica mais rico e o pobre mais pobre.”

Lembrei que o mandato de Jerome Powell no Fed (Banco Central Norte-Americano) termina em maio de 2026, antes das eleições de meio de mandato, e que Trump já sinalizou que deseja nomear alguém “leal”, como Kevin Warsh, da órbita MAGA. Alertei: “É a mesma captura que já vimos no Departamento de Justiça.” O objetivo: forçar a queda dos juros, segundo as vontades de Trump, ainda que isso pressione a inflação. Perguntei especificamente sobre essa ameaça real à independência do FED, de perder sua autonomia técnica e cair sob o controle político de Trump num futuro próximo, proposta já descrita no Projeto 2025, que Trump vem seguindo à risca! Ana foi direta: “O mercado está tão atolado na disfuncionalidade do presente que perdeu a capacidade de projetar este futuro.” Quando perguntei sobre a resiliência dos títulos do Tesouro, ela foi precisa: “É contraintuitivo. Mas o dólar ainda é a moeda de reserva global. E bad news is good News (notícias ruins são notícias boas), em crise, os investidores correm para os Treasuries (títulos do tesouro americano), mesmo com Trump. A crise gerada por ele mesmo fortalece temporariamente a demanda pelos ativos americanos.”

Ana traçou um paralelo instigante entre o comportamento de Donald Trump e o de Luiz Inácio Lula da Silva em relação à política monetária. Assim como Lula pressionou publicamente Roberto Campos Neto, mas acabou mantendo o racional técnico ao indicar seu sucessor no Banco Central, Trump também critica abertamente o Fed e suas decisões de juros, sobretudo diante do risco recessivo ampliado por suas tarifas. No entanto, o Federal Reserve sob Powell, tem se mantido, até aqui, pragmático, focado em dados objetivos de inflação e estabilidade, evitando ceder à pressão política. A diferença, segundo Ana, está no caráter autoritário de Trump, que, ao contrário de Lula, ameaça institucionalmente essa autonomia ao flertar com a substituição forçada do presidente do Fed e a sua subordinação ao poder Executivo. Essa tensão revela não apenas uma disputa econômica, mas um embate sobre os próprios limites da democracia.

Sobre a política tarifária, Ana foi enfática: ela colapsa as cadeias produtivas. Empresas como Procter & Gamble reportaram queda nas vendas, enquanto brinquedos, eletrônicos e autopeças já começaram a faltar. Cancelamentos em rotas comerciais China-EUA se acumulam. “As empresas correm para importar antes das novas tarifas, inflando os estoques e distorcendo os dados. O impacto é o maior desde a Segunda Guerra”, completou. Voltei então ao centro da nossa análise: o mercado não reage porque escolheu acreditar. “Never bet against America”, (bordão do marcado financeiro, nunca aposte contra os USA) disse Ana. “A promessa de um Estado mínimo, sem impostos, sem imigração, sem diversidade, embriaga parte dos investidores. O mercado sempre foi misógino, classista e conservador: só é racional quando o lucro está em jogo.”

Esse cenário é agravado por uma ofensiva contra imigrantes, cuja contribuição é central para a economia americana. A entrada de imigrantes pela fronteira sul foi praticamente zerada, o que, como observei, “reduz a mão de obra e desacelera a geração de empregos”. Muitos acreditam que imigrantes não contribuem com impostos, mas lembrei que “eles pagam sim, inclusive sobre consumo, mesmo sem status legal.” Além disso, Trump praticamente desmontou o IRS, demitindo a maioria dos funcionários e deixando a arrecadação de impostos em ruínas. Os cortes prometidos por Elon Musk (DOGE) de dois trilhões geraram, na prática, uma economia ridícula de 100 mil dólares. A falta de imigrantes legais afeta diretamente setores como agricultura, construção civil, turismo e hospitalidade. Afirmei com clareza: “Aqui na Flórida, como em todos os Estados, a economia local precisa de imigrantes…. o Governador DeSantis já está sentindo a falta de mão de obra. Sabe o que ele fez? Flexibilizou o trabalho infantil.” Redução da idade mínima, corte de horário de descanso e sobrecarga de crianças ainda no ensino médio. “É um retrocesso brutal”, confirmou Ana.

A tentativa de nacionalizar a produção sem mão de obra imigrante também é ilusão. Ana explicou: “Mesmo com pleno emprego e todo mundo saudável, a população americana não dá conta da produção interna.” Isso gera um paradoxo produtivo. Reforçou Ana: “Você quer tirar os imigrantes e ao mesmo tempo aumentar a produção? Não tem como.” Assim, o trumpismo econômico não só aprofunda a desigualdade ao premiar os mais ricos, como mina a base de arrecadação e destrói a infraestrutura produtiva ao perseguir imigrantes.

Trumponomics não é apenas uma política econômica. É uma estratégia de poder baseada na desinformação, na captura institucional e no apelo emocional. A estética do homem forte e “intuitivo” suplantou a técnica e a racionalidade. “Talvez falte terapia. Talvez falte ética”, comentou Ana. “Mas talvez também seja excesso de testosterona e falta de estrogênio”, ironizei. Mas o que certamente falta, como resumi ao citar Michelle Goldberg, é “adulto na sala”. A economia americana, hoje, se parece com uma festa em que todos sabem que o teto vai cair, mas seguem brindando com ações da Tesla. Porque no fim do dia, como concluiu Ana Mallmann: “As pessoas só querem ganhar dinheiro. E é isso que torna tudo mais perigoso.”

* Referências ao artigo de Michelle Goldberg, 7 de Abril de 2025 “Por que tantas pessoas se iludiram com Trump”? New York Times.

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