Ron DeSantis, governador da Flórida e aliado de TrumpGage Skidmore
O que acontece quando um estado governado por um líder extremista se alinha completamente a um governo federal igualmente autoritário? A resposta está na Flórida de Ron DeSantis e na presidência de Donald Trump em seu segundo mandato. De um lado, o laboratório de guerra cultural mais agressivo dos Estados Unidos. Do outro, o governo central que adotou esse modelo como política oficial. Juntos, eles compõem uma engrenagem de retrocessos coordenados uma espécie de eixo reacionário institucionalizado.
Com 28 das 40 cadeiras no Senado estadual e 84 das 120 na Câmara, DeSantis governa com margem confortável para aprovar qualquer projeto, por mais extremo que seja. Essa maioria não apenas neutraliza qualquer tentativa de oposição parlamentar, como transforma o Legislativo em linha de montagem de projetos ultraconservadores, autoritários e muitas vezes inconstitucionais. O resultado é um estado onde políticas migratórias, educacionais e civis são aprovadas sem freios, muitas vezes servindo de inspiração direta para decretos e ordens executivas assinadas por Trump em Washington. A Flórida virou vitrine e, ao mesmo tempo, estufa do trumpismo legislativo.
Algumas leis da Florida que antecipam ou serviram de inspiração ao autoritarismo federal: SB 1718 Lei Anti-Imigração (2023; Criminaliza o transporte de imigrantes indocumentados. Torna obrigatório o sistema E-Verify para empresas com mais de 25 funcionários. Exige que hospitais perguntem o status migratório dos pacientes. Invalida carteiras de outros estados emitidas para imigrantes sem status legal.
HB 1557 Dont Say Gay (2022). Proíbe qualquer menção orientação sexual ou identidade de gênero nas escolas públicas da educação infantil ao ensino médio. Estimula censura de livros, intimidação de professores e exclusão de estudantes queer do espaço educacional.
HB 7 Stop Woke Act (2022). Essa lei estadual, oficialmente chamada Individual Freedom Act, proíbe o ensino de temas como racismo sistêmico, privilégios raciais e opressões históricas em escolas públicas e no ambiente corporativo. A HB 7 veta qualquer conteúdo que cause desconforto em alunos por questões raciais, promovendo na prática o apagamento de debates essenciais sobre desigualdade e injustiça. Além disso, desde junho de 2021, uma norma aprovada pelo Conselho Estadual de Educação já havia banido o ensino da teoria crítica da raça nas escolas públicas resultando, entre outras consequências, na exclusão da história da diáspora africana dos currículos do ensino médio.
HB 999/SB 266 Fim dos programas DEI nas universidades (2023). Eliminam os programas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) nas universidades públicas da Flórida, censuram conteúdos críticos e permitem demissões ideológicas de professores.
Aprovada em maio de 2023 e em vigor desde julho do mesmo ano, a lei SB 846 impôs restrições severas às universidades públicas da Flórida, proibindo a contratação de estudantes e pesquisadores de países considerados de preocupação como China, Cuba, Venezuela, Irã e Rússia além de vedar parcerias institucionais com entidades ligadas a esses países. A medida afetou diretamente a comunidade acadêmica internacional, gerando demissões, suspensão de bolsas e um ambiente de perseguição política. Em março de 2025, parte da lei foi temporariamente bloqueada por decisão judicial, que reconheceu seu caráter discriminatório e inconstitucional.
SB 266 Remoção da sociologia como disciplina obrigatória (implementada em 2024). Aprovada em 2023, essa legislação removeu o curso de sociologia da grade obrigatória das universidades públicas do estado. A medida foi implementada oficialmente em janeiro de 2024, substituindo a disciplina por um curso de História Constitucional Americana. O governo alegou que a mudança visava reforçar o ensino baseado em fatos, mas críticos denunciam a tentativa de erradicar o pensamento crítico e a análise das estruturas sociais das salas de aula.
Após a posse de Trump, diversas universidades públicas da Flórida, como a Florida International University (FIU) e a University of Florida (UF), firmaram acordos com o Departamento de Imigração e Alfândega dos EUA (ICE) por meio do programa 287(g). Esses acordos permitem que policiais universitários atuem como agentes de imigração, com poderes para interrogar, deter e compartilhar informações sobre estudantes com o ICE (órgão federal de imigração). A medida gerou um clima de medo entre estudantes internacionais, especialmente aqueles engajados em ativismo político, como os que apoiam a causa palestina. Casos como a deportação do estudante colombiano Felipe Zapata Velázquez, da UF, após uma infração de trânsito, intensificaram os protestos e a desconfiança em relação às autoridades universitárias.
Talvez a lei mais chocante até agora da Florida de DeSantis seja a SB 4-C, aprovada pelo Legislativo e, neste mês, suspensa temporariamente por uma juíza federal. Esta lei, entre outros pontos, impõe pena de morte obrigatória para imigrantes indocumentados condenados por crimes capitais, em clara violação a precedentes da Suprema Corte que exigem análise individualizada de cada caso. Para cidadãos americanos… essa obrigatoriedade não existe.
O autoritarismo na Flórida não se limita às leis aprovadas. Há uma estratégia paralela e perigosa: acordos informais entre o ICE e as polícias estaduais e locais. Sem passar pelo Legislativo, esses convênios com base no programa 287(g) permitem que policiais atuem como agentes migratórios, investigando, prendendo e entregando imigrantes ao sistema federal de deportação. O resultado é um cooptação do aparato policial estadual pela lógica federal repressiva, especialmente contra comunidades latinas e negras. Tudo isso ocorre à margem de qualquer controle democrático, com impacto direto no cotidiano de milhares de famílias.
O projeto político-legislativo que une Trump e DeSantis tem alvos nítidos e recorrentes. Corpos racializados, dissidências de gênero, imigrantes e professores são sistematicamente transformados em inimigos internos. Jovens LGBTQIA+ são silenciados e empurrados para fora do espaço escolar por políticas que negam sua existência. Imigrantes, mesmo sem qualquer antecedente criminal, vivem sob o espectro da perseguição permanente basta existir fora do modelo ideal de pertencimento. Professores são vigiados, censurados e ameaçados por ensinar história crítica, enquanto universidades públicas sofrem intervenções e cortes que visam sufocar a liberdade acadêmica. A história da população negra, da escravidão e da resistência foi apagada dos currículos escolares, e a sociologia, por ser ferramenta de análise crítica, simplesmente eliminada do ensino público.
Não se trata de medidas isoladas, mas de um roteiro coerente. A engrenagem repressiva se alimenta do medo, legitima a exclusão e pavimenta o caminho para um modelo autoritário de sociedade onde pensar é um risco e existir, para muitos, é quase um crime. Trata-se de um projeto de exclusão sistemática e controle ideológico com aparência de legalidade.
O caso do prefeito de Orlando, Buddy Dyer, mostra como o uso político do aparato legal se tornou tática do governo estadual. Após apoiar políticas pró-imigrantes, Dyer foi ameaçado publicamente de remoção pelo procurador-geral da Flórida, James Uthmeier, por meio de uma carta divulgada diretamente no X (ex-Twitter). Esse tipo de lawfare serve menos à Justiça e mais ao constrangimento político e ao silenciamento de adversários.
Enquanto a Flórida mergulha no autoritarismo, estados como Califórnia e Massachusetts erguem barreiras institucionais contra a cooperação automática com o ICE. A California Values Act, por exemplo, proíbe a colaboração entre agentes locais e autoridades migratórias, protege o sigilo de dados pessoais e impede prisões com base em status migratório. Cidades como San Francisco e Los Angeles investem em defesa legal gratuita para imigrantes. É o federalismo americano como trincheira democrática.
A Flórida virou o experimento mais acabado de uma democracia em retrocesso, é o futuro que o trumpismo quer para o país inteiro. DeSantis testa limites, Trump os institucionaliza. As leis aprovadas no estado são ensaios gerais para um projeto nacional que pretende reconfigurar os Estados Unidos como uma democracia apenas no nome. Se não forem enfrentadas, essas políticas se consolidarão como modelo nacional. E a democracia, como a história nos lembra, nunca morre de uma vez ela vai sendo esvaziada, lei por lei, até restar apenas a casca
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