Barack Obama ficou conhecido como o Deporter-in-Chief por supervisionar o maior número de deportações na história dos Estados Unidos. Sua administração, apesar de priorizar a remoção de imigrantes com antecedentes criminais, enfrentou duras críticas pelo volume elevado de expulsões. Em 2011, o governo Obama instituiu a política de Prosecutorial Discretion, orientando agentes migratórios a focarem em casos graves, reincidência ou risco à segurança pública. Donald Trump, em seu primeiro mandato, apesar da retórica agressiva e da militarização das fronteiras, deportou menos que Obama.
No entanto, sua política foi marcada por ações mais indiscriminadas, atingindo imigrantes sem antecedentes criminais relevantes e desmontando salvaguardas como a própria Prosecutorial Discretion, que foi oficialmente revogada. Joe Biden, por sua vez, superou Trump em números absolutos de deportações, impulsionado sobretudo por expulsões sumárias na fronteira.
Já a administração Trump 2.0, até o momento, deportou aproximadamente 55.660 pessoas nos dois primeiros meses de 2025, número inferior à média mensal de Biden no ano anterior. Ao retomar o poder, Trump não apenas reafirmou sua meta de deportar um milhão de pessoas no primeiro ano, como também sepultou qualquer diretriz de discricionariedade, ampliando o alcance e a rigidez do aparato de remoção.
Número de deportações por governo, segundo o jornal El PaísReprodução
Deixemos os dados quantitativos para olharmos com mais detalhe. Em seu segundo mandato, o presidente Donald Trump transformou a política migratória dos Estados Unidos em uma engrenagem de poder autoritário, usando instrumentos legais de exceção, cooptação de agências federais e alianças com governadores republicanos para consolidar um regime de repressão sistemática contra imigrantes, estudantes internacionais e até cidadãos legalmente residentes. A Flórida, sob um governador republicano, Ron DeSantis, emerge como um microcosmo desta arquitetura federal-estadual de vigilância e exclusão.
Uma das iniciativas mais alarmantes foi a decisão do governo Trump de autorizar o ICE (Serviço de Imigração e Alfândegas) a acessar diretamente o banco de dados da Receita Federal (IRS) para identificar e localizar imigrantes sem status legal. A prática rompe décadas de compromisso institucional com a confidencialidade fiscal e mina a confiança de milhões de trabalhadores que, mesmo indocumentados, pagavam voluntariamente seus impostos com a promessa tácita de não serem perseguidos por isso. A medida causou tamanha controvérsia que o secretário do Tesouro, Scott Besant, precisou intervir pessoalmente após recusas formais de altos funcionários do IRS. A justificativa do governo: interesse da segurança nacional. A crítica: institucionalização da auto-incriminação forçada.
Uma das práticas mais sombrias reveladas por reportagem investigativa do New York Times recentemente foi a inclusão de imigrantes em uma chamada lista de mortos da Social Security (espécie de Previdência Social dos EUA). A administração Trump tem transferido registros de óbito para esses indivíduos como forma de justificar o cancelamento de vistos, a suspensão de benefícios sociais e, em alguns casos, até mesmo a deportação de pessoas vivas e legalmente residentes. A manobra, descrita como erro administrativo por autoridades, revela na verdade uma estratégia deliberada de fabricar ilegalidades e empurrar imigrantes para fora do sistema formal. Trata-se, literalmente, de matar juridicamente uma pessoa para poder apagá-la do país, para efeito de comparação, é como se a pessoa tivesse seu CPF cancelado no Brasil.
Outra frente de ataque foi a revogação do programa de parole humanitário, criado por Biden, que permitia a entrada temporária legal de pessoas oriundas de Cuba, Haiti, Nicarágua e Venezuela. Com mais de 530 mil pessoas afetadas, a medida foi temporariamente suspensa por decisão da juíza federal Indira Talwani, que apontou graves violações ao devido processo e risco de separação familiar. A decisão judicial representa uma vitória temporária da legalidade, mas o futuro do programa permanece incerto, com o governo insistindo na tese de que o presidente pode revogar o que outro presidente criou.
Em março, o governo encerrou o contrato com o Acacia Center for Justice, entidade que oferecia representação legal para mais de 26 mil crianças migrantes desacompanhadas. Sob a justificativa de reorganização orçamentária, a medida foi duramente criticada até por senadores republicanos. Crianças de três ou quatro anos agora são obrigadas a comparecer sozinhas diante de juízes de imigração: um retrato grotesco do que se tornou a política migratória americana. Uma investigação da NPR revelou que agentes do Immigration and Customs Enforcement (ICE) passaram a ter acesso direto aos bancos de dados do Escritório de Reassentamento de Refugiados (ORR), que armazenam informações sensíveis sobre crianças migrantes desacompanhadas, como relatórios psicossociais.
Essa prática permite que o ICE use dados confidenciais para localizar e deportar familiares e patrocinadores (sponsors) dessas crianças. O senador Alex Padilla, da Califórnia, lidera uma ofensiva legal no Congresso contra essa diretriz, argumentando que o uso de dados de menores viola princípios básicos de confiança e proteção infantil: Estamos falando de crianças. Crianças que cruzaram fronteiras sozinhas. E o governo está transformando sua vulnerabilidade em armadilha.
Em abril de 2025, Trump autorizou o uso de bases militares na Roosevelt Reservation, uma faixa federal na fronteira sul, para deter migrantes. O uso das Forças Armadas nesse contexto levanta sérias dúvidas sobre violações à Lei Posse Comitatus, que restringe o uso militar em funções de policiamento interno. Paralelamente, o governo designou cartéis mexicanos como organizações terroristas, uma jogada jurídica que amplia a margem para ações militares unilaterais em território estrangeiro, inclusive com uso de drones. Especialistas alertam para o risco de incidentes diplomáticos com o México e para o precedente de exportação de medidas repressivas sob pretexto de segurança nacional.
Segundo alerta recente da American Immigration Lawyers Association (AILA), o ICE está cancelando registros no sistema SEVIS o banco de dados oficial de estudantes internacionais sem aviso prévio aos alunos ou às universidades. Essas revogações, feitas diretamente pelo braço do ICE chamado SEVP, colocam os estudantes em situação de ilegalidade instantânea, muitas vezes sem que eles ou os seus DSOs (Designated School Officials) tenham sido informados.
Além disso, muitos vistos também estão sendo revogados diretamente pelo Departamento de Estado. Em vários casos, trata-se de estudantes com status legal e visto válido, mas que passaram a ser alvo após se envolverem em protestos políticos, especialmente os relacionados à guerra em Gaza, ou simplesmente por terem registros antigos de contravenções já inocentadas pela Justiça. As justificativas alegadas para esses cancelamentos são amplas e vagas: failure to maintain status e serious adverse foreign policy consequences.
Essa última categoria, em particular, abre brecha para criminalizar opiniões políticas contrárias à política externa dos EUA. A situação é agravada por políticas de vigilância digital. Com o programa Catch and Revoke, o Departamento de Estado usa inteligência artificial para monitorar redes sociais de estudantes estrangeiros. Participações em protestos pró-Palestina, postagens críticas a Israel são usadas para revogar vistos, muitas vezes sem aviso prévio ou justificativa formal. A consequência direta é a transformação da liberdade de expressão em critério de deportação, mesmo quando protegida constitucionalmente.
Na Flórida, o governador Ron DeSantis implementou medidas que transformam universidades públicas em extensões do aparato migratório federal. Instituições como UF, FAU e UCF firmaram acordos com o ICE através do programa 287(g), permitindo que polícias universitárias atuem como agentes de imigração. Estudantes internacionais, estão sendo detidos e deportados por infrações administrativas, como uma carteira de motorista vencida. A nova diretriz da Patrulha Rodoviária da Flórida (FHP), autoriza agentes a prender motoristas indocumentados por qualquer infração, por menor que seja, como dirigir com placa vencida ou sem habilitação válida. Além disso, esses motoristas podem ser detidos por até 60 minutos sem suspeita de crime, apenas para aguardar a chegada de autoridades federais de imigração.
Essa medida reativa práticas de cooperação com o ICE já teve impactos concretos: Felipe Zapata Velázquez, estudante colombiano da Universidade da Flórida, foi deportado após ser parado por infrações de trânsito menores, mesmo estando matriculado regularmente. O caso gerou protestos de estudantes e parlamentares, que acusam o Estado de usar o sistema rodoviário como braço auxiliar do ICE.
Especialistas alertam que essas práticas podem ferir a Quarta Emenda da Constituição, que proíbe detenções arbitrárias. A ideia de prender alguém sem crime para aguardar deportação é um abuso de poder travestido de burocracia, afirma a advogada Imara Lopez, do Southern Poverty Law Center. A Flórida também é um dos estados com maior número de acordos 287(g), que permitem que policiais estaduais e municipais atuem como agentes de imigração, uma sobreposição de funções que, na prática, revoga o devido processo legal.
Ambas as medidas evidenciam o que analistas vêm chamando de modelo Flórida de governança anti-imigrante: uma sinergia estratégica entre a Casa Branca, governos estaduais republicanos e instituições locais que amplia o alcance da repressão sem necessidade de passar pelo Congresso. Instrumentos como ordens executivas, acordos administrativos e diretrizes internas têm sido o principal mecanismo de avanço dessas políticas, contornando a resistência legislativa e judicial. Além disso, leis estaduais aprovadas em 2023 e 2024, que restringem o acesso de indocumentados a universidades públicas, benefícios trabalhistas e serviços de saúde, consolidam a Flórida como uma espécie de laboratório jurídico e cultural da agenda trumpista. Trata-se de uma ofensiva articulada que visa não apenas reprimir, mas estigmatizar e desumanizar.
Enquanto o governo Trump intensifica a perseguição a imigrantes por motivos banais, como uma placa vencida, um protesto estudantil ou uma denúncia sem provas, o mesmo governo cogita lançar o gold card: uma espécie de cidadania premium vendida por US$ 5 milhões.
Segundo reportagem da CBN, Brasil, o empresário brasileiro Ricardo Bellino declarou interesse em ser um dos primeiros a adquiri-lo, enviando e-mail ao megainvestidor Howard Lutnick, secretário de comercio do governo Trump. Ainda não há anúncio oficial por parte da Casa Branca sobre o Gold Card como política pública, mesmo porque a uma nova modalidade de cidadania precisa passar pelo legislativo, mas a proposta circula de forma especulativa, até mesmo com cartão dourado e o rosto do presidente estampado.
Inspirado no visto EB-5, que oferece residência, e não cidadania, em troca de investimentos a partir de US$ 800 mil e exige a geração de emprego para trabalhadores americanos como critério central, o gold card não tem caráter de investimento ou qualquer contrapartida, mais do que uma nova categoria migratória, trata-se de um projeto simbólico: transformar cidadania em produto de luxo.
Para uns, a deportação sumária. Para outros, o privilégio comprado. Para uns, vigilância algorítmica e audiências sem defesa. Para outros, lobby, e-mail direto com aliados e o cheque certo. A América, sob Trump 2.0, abandona qualquer pretensão de universalismo constitucional para declarar, sem pudor: aqui, a cidadania é para quem pode pagar. Não se trata mais de política migratória: trata-se da arquitetura de um regime autocrático. O segundo governo Trump instrumentaliza o sistema de imigração como dispositivo de controle social, punição política e engenharia demográfica.
A promessa de perseguir apenas criminosos evaporou diante de uma prática que pune o indesejável, o dissidente e o vulnerável. O que vemos é a normalização da exceção, a erosão das garantias constitucionais e a conversão da cidadania em moeda de poder. E para quem ainda insiste em dizer que isso não pode acontecer nos Estados Unidos, é preciso reconhecer: está acontecendo…
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