O termo “presidencialismo de coalizão”, cunhado por Sérgio Abranches em 1988, foi durante décadas a chave para entender a relação entre o Executivo e o Legislativo no Brasil. No entanto, o cenário político atual exige uma revisão desse conceito.
Essa reflexão foi motivada por uma sugestão de meu amigo Miguel Gerônimo, mestre profissional em Poder Legislativo, que me propôs o desafio de escrever um texto como ponto de partida para uma discussão sobre a qualificação do presidencialismo no Brasil. Ele destacou que a expressão “presidencialismo de coalizão” fazia todo o sentido no passado, quando o Presidente da República detinha controle pleno sobre o orçamento e as políticas públicas, mas que agora está ultrapassada diante da nova realidade, na qual o Parlamento se empoderou e passou a ter controle sobre parcela relevante do orçamento. Com o Congresso assumindo um papel mais ativo na definição do orçamento e na formulação de políticas públicas, o presidente se vê obrigado a adotar uma postura mais colaborativa e menos centralizadora. Nesse contexto, propõe-se o termo “presidencialismo de concertação” para descrever essa nova configuração, onde a governabilidade depende de um processo contínuo de negociação, consenso e pactuação entre os Poderes.
Lula discursando no plenário da Câmara em 2023, no evento de promulgação da reforma tributáriaGabriela BIló/Folhapress
O “presidencialismo de coalizão” descrevia um sistema em que o presidente da República, para governar, precisava formar alianças com partidos no Congresso Nacional, distribuindo cargos e recursos em troca de apoio político. Esse modelo funcionou enquanto o Executivo mantinha relativo controle sobre a agenda legislativa e o orçamento. No entanto, nos últimos anos, o Legislativo brasileiro se fortaleceu, tornando-se um ator central na definição das políticas públicas e no controle dos recursos financeiros. O presidencialismo de concertação surge como uma evolução desse modelo, refletindo uma dinâmica mais horizontal e interdependente. Nele, o presidente não apenas negocia apoio, mas precisa compartilhar decisões estratégicas com o Poder Legislativo, em um processo que envolve diálogo, concessões e busca de consenso. A “concertação” remete à ideia de um acordo estruturado e contínuo, onde ambos os Poderes têm papéis ativos na governabilidade.
O presidencialismo de concertação pode ser definido por algumas características principais. Primeiramente, há um controle compartilhado do orçamento, com o Congresso assumindo um papel central na definição do orçamento, limitando a autonomia do Executivo. O presidente precisa negociar com os parlamentares para garantir a aprovação de suas prioridades, o que muitas vezes resulta em concessões e ajustes. Segundo, a agenda legislativa passa a ser colaborativa, com a formulação de políticas públicas sendo um esforço conjunto. Projetos de lei importantes são discutidos e modificados em comissões no Parlamento, com participação ativa de deputados e senadores. Em terceiro lugar, a negociação é contínua, diferentemente do modelo anterior, onde as negociações ocorriam pontualmente.
No presidencialismo de concertação, o diálogo é constante, e o presidente precisa manter uma relação próxima com líderes partidários e comissões do Parlamento para garantir a governabilidade. Além disso, há um fortalecimento do Legislativo, que se torna um ator mais autônomo e influente, com capacidade de vetar ou modificar propostas do Executivo. Isso exige que o presidente adote uma postura mais colaborativa e menos impositiva.
Nos últimos anos, diversos episódios ilustram a dinâmica do presidencialismo de concertação. Um exemplo é a PEC da Transição (2022), onde o presidente Luiz Inácio Lula da Silva precisou negociar com o Congresso a aprovação de uma medida que ampliou o teto de gastos para viabilizar políticas sociais. O texto final foi resultado de intensas negociações e concessões ao Legislativo. Outro exemplo é a Reforma Tributária (2023), que foi amplamente discutida e modificada no Congresso, com deputados e senadores desempenhando um papel central na definição dos detalhes. O Executivo atuou mais como um facilitador do que como um protagonista. Além disso, o Congresso tem ampliado sua influência sobre o orçamento federal, com emendas parlamentares ganhando cada vez mais peso. Por conseguinte, o presidente precisa negociar com os parlamentares para garantir a aprovação de suas prioridades, muitas vezes cedendo espaço para demandas regionais e setoriais.
A adoção do termo “presidencialismo de concertação” não é apenas uma mudança semântica, mas reflete transformações profundas no sistema político brasileiro. Entre as implicações desse novo modelo, destacam-se a possibilidade de maior estabilidade política, ao envolver o Congresso de forma mais ativa na governabilidade, reduzindo conflitos e crises institucionais. No entanto, há também o risco de paralisia decisória, já que a necessidade de consenso pode tornar o processo decisório mais lento e burocrático, especialmente em um Congresso fragmentado como o brasileiro. Outra implicação é a ampliação da representatividade, ao dar mais voz ao Legislativo, o que pode incluir demandas regionais e setoriais, mas também favorecer o clientelismo e o fisiologismo. Por fim, há uma redução do papel do Poder Executivo, com o presidente perdendo parte de sua autonomia e capacidade de implementar políticas de forma ágil, precisando constantemente negociar com o Congresso.
Aliás, o gesto do presidente Lula de comunicar previamente aos presidentes da Câmara e do Senado a escolha da deputada Gleisi Hoffmann (PT/PR) para a Secretaria de Relações Institucionais (SRI) reflete uma prática comum no presidencialismo de concertação. Esse tipo de ação demonstra respeito ao Parlamento e busca evitar atritos desnecessários, fortalecendo a relação entre os Poderes Executivo e Legislativo, afinal a SRI exerce um papel central nesse contexto, pois é responsável por mediar o diálogo entre o governo e o Congresso, facilitando a articulação política e a construção de consensos.
Deve-se reconhecer, também, que sustentar a tese do presidencialismo de concertação em substituição ao presidencialismo de coalizão não é tarefa fácil, pois aparentemente o diagnóstico corrente parece contrariá-la. A polarização política cria a imagem de um Executivo frágil, desarticulado e sem base de apoio, com inúmeras Medidas Provisórias (MPs) caducando sem serem votadas ou ignoradas pelo Congresso. No entanto, essa visão desconsidera um cenário mais amplo, em que muitas MPs foram incorporadas em outras proposições ou cumpriram seus objetivos antes de caducar. Apesar das dificuldades, nenhum tema relevante para o governo deixou de ser aprovado, ainda que com concessões. Desde os governos Bolsonaro e Temer, marcados pela dominância do Centrão, a percepção de fragilidade persiste, agravada pelo recorde de vetos presidenciais derrubados pelo Legislativo. Além disso, o governo enfrenta desafios inéditos para combater a mistificação e a desinformação, que distorcem a percepção pública sobre suas ações, enquanto programas como a Voz do Brasil parecem dominados pela oposição, reforçando a narrativa de um Executivo incapaz de se comunicar efetivamente.
Essa aparente desordem sugere um cenário caótico, no qual o “baixo clero” do Congresso parlamentares com poder de barganha, mas sem expressão nacional impõe agendas particulares, ameaçando a coesão de um projeto nacional. No entanto, essa aparente desordem reflete um sistema político fragmentado e polarizado, onde a construção de consensos exige habilidade negociadora e disposição para enfrentar desafios estruturais, que efetivamente estão presentes, porém nem sempre perceptíveis ao senso comum. O ponto central é que, apesar das dificuldades decorrentes do empoderamento do Legislativo, o Executivo tem conseguido, por meio de diálogo e negociação, aprovar sua agenda, demonstrando capacidade de conduzir o processo político e garantir a implementação de suas prioridades, mesmo em um cenário de extrema complexidade e resistência.
Por todas essas razões, o termo “presidencialismo de concertação” é o que melhor captura a essência da nova dinâmica política brasileira, onde o Executivo e o Legislativo atuam de forma mais interdependente e colaborativa, mesmo disputando o conteúdo da política pública. Enquanto o “presidencialismo de coalizão” descrevia um sistema centrado no presidente, o novo modelo reflete uma realidade onde o Congresso é um ator central e indispensável para a governabilidade. A adoção dessa nova terminologia não apenas atualiza o debate, mas também oferece uma lente mais precisa para entender os desafios e oportunidades do sistema político brasileiro contemporâneo. Em um cenário de crescente complexidade e fragmentação, o presidencialismo de concertação pode ser a chave para uma governabilidade mais estável e inclusiva, isolando o extremismo.
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