Trajeto diário entre a casa simples na periferia e os apartamentos luxuosos que limpam no centro da cidade consome não apenas horas da rotina, mas também uma parte significativa do orçamento de várias mães
O ônibus range os freios na parada, a porta se abre com um suspiro mecânico, tedioso, e Maria, com seus R$ 1.781 mensais (IBGE, 2023), desce, ajeitando a sacola pesada no ombro e segurando firme a mão de Pedrinho, seu filho de seis anos. Mais um dia de trabalho como diarista no centro de São Paulo, mais uma corrida contra o tempo para voltar para sua casa na periferia antes que a noite caia, pegar Pedrinho na casa da vizinha e buscar o pequeno João na creche improvisada, onde outras mães solo, abandonadas pelos companheiros, igualmente exaustas, deixam seus filhos sob os cuidados de quem pode, por R$ 300 mensais.
O trajeto diário entre a casa simples na periferia e os apartamentos luxuosos que limpa no centro da cidade consome não apenas horas de sua rotina, mas também uma parte significativa de seu orçamento. A compra de dois bilhetes — um para o ônibus e outro para o metrô — pesa ainda mais no orçamento apertado, onde cada centavo é contado. Mas não tem jeito: lá se vão R$ 18 por dia para poder trabalhar. “O prefeito não sabe que, para trabalhar lá no centro, eu tenho que pagar integração. Todo mês, R$ 432 pra carregar o bilhete. Pro aluguel, mais R$ 700. Carteira de trabalho assinada não é pra todo mundo. É um luxo que não tenho. Cada vez que o transporte aumenta, tem menos comida e falta dinheiro pras despesas. Como é que eu vou pagar as coisas da casa? Tem que lavar as roupas das crianças, tem água, luz e o botijão. Meu Deus, nem trabalhando dia e noite eu dou conta disso”, lamenta Maria. Mais noites sem dormir, Maria não sabe ao certo como vai fechar as contas do mês. “Só se eu mudar para mais longe e alugar um cômodo sem banheiro. Daí, quem sabe…”
Enquanto isso, na mesma cidade, Lucas, da mesma idade de Pedrinho, segue para sua escola bilíngue alheio à realidade que o cerca. Filho de advogado e mãe vereadora, o aumento da tarifa do ônibus é apenas um número, um detalhe irrelevante diante da segurança e conforto da vida presente e da esperança de um futuro certo, repleto de agendas culturais, sociais e lazer. Já para Maria, cada real a mais é uma preocupação a mais, tornando a luta pelo básico — alimentos, remédios e roupas — ainda mais difícil. “Que futuro terão meus filhos se nem o presente eu consigo garantir? As pessoas pensam que eu não me esforço, que não trabalho. Fazer faxina e uns bicos não bastam para criar meus filhos. Só quero que eles cresçam bem.”
Maria é o reflexo de milhões de mães solo no Brasil. Entre elas, 32% das que têm filhos pequenos estão fora da força de trabalho, e outras 10% enfrentam o desemprego (FGV, 2022). Nas periferias, a pobreza e a extrema pobreza são realidades recorrentes: mulheres lutam diariamente para garantir o básico, enquanto crianças como Pedrinho e João crescem sem acesso à educação de qualidade, alimentação adequada ou segurança social. Essa situação perpetua uma desigualdade estrutural que molda negativamente o futuro dessas famílias e alimenta o ciclo de exclusão social.
Que futuro espera por Pedro e João nas condições em que vivem atualmente? Que nação estamos moldando ao priorizar o aumento de tarifas em detrimento de investimentos em políticas sociais inclusivas? Políticas que poderiam proporcionar a essas mães e crianças a chance de romper o ciclo de pobreza, garantindo cidadania plena e possibilitando que o Brasil construa um presente mais promissor rumo a um futuro próspero. Lembrando: o Brasil é feito de pessoas, por pessoas e para as pessoas.
Experiências de gratuidade no transporte público têm demonstrado que é possível aliviar significativamente o peso que recai sobre famílias de baixa renda, como a de Maria, ao transformar o acesso à mobilidade em um direito universal e gratuito. Em Maricá (RJ), a implementação do transporte gratuito resultou em uma economia de 20% no orçamento familiar das pessoas de baixa renda (Prefeitura de Maricá, 2024; WRI Brasil, 2024). Para Maria, isso significaria converter os R$ 432 que atualmente gasta mensalmente com passagens em alimentos e outras despesas fundamentais para a criação de Pedrinho e João, ou ainda em livros e materiais que ampliem as possibilidades de aprendizado e sucesso na escola, ou, quem sabe, em oportunidades de recreação e lazer qualificados que, de outra forma, permaneceriam inacessíveis. A tarifa zero, além de garantir a mobilidade como um direito, entrega algo que não se pode medir em números, mas que transforma vidas: a possibilidade de um presente digno e a esperança de um futuro.
A política de tarifa zero, como visto em cidades como Caucaia (CE) e Guararema (SP), vai além de uma solução prática para o transporte. Ela atua como um vetor de inclusão social. Em Caucaia, onde a gratuidade foi implementada em 2021, o comércio local registrou um aumento de 25% no faturamento, enquanto a demanda pelo transporte cresceu 371% em dois anos (NTU, 2024; WRI Brasil, 2024). O tecido social, que representa a rede de conexões e solidariedade entre indivíduos, grupos e comunidades, se fortalece quando mais pessoas, independentemente de sua classe ou localização, têm acesso à mobilidade, serviços e oportunidades. Para Maria e seus filhos, isso significa mais do que economizar no transporte; significa participar ativamente da vida comunitária, frequentar eventos escolares e culturais, acessar serviços de saúde e estabelecer vínculos com outros grupos sociais, incluindo aqueles antes segregados pela barreira econômica. Com a tarifa zero, Maria pode buscar melhores oportunidades de trabalho, enquanto Pedrinho e João se conectam a um ambiente mais diversos e inclusivos, reduzindo a segregação social e promovendo um senso coletivo de pertencimento que beneficia toda a sociedade.
Além de tudo o que foi anteriormente descrito, pesquisas apontam que políticas de transporte gratuito podem criar novos empregos ao estimular o comércio local e aumentar a mobilidade da força de trabalho, tudo isso sem comprometer o meio ambiente (Margarita et al., 2024 em Free Public Transport: More Jobs without Environmental Damage?).
O impacto ambiental também é significativo. Em Curitiba, a integração de ônibus elétricos ao sistema de transporte público gratuito resultou na redução das emissões de gases de efeito estufa, contribuindo para uma melhora na qualidade de vida urbana (Prefeitura de Curitiba, 2024). Em Campinas, a implementação da tarifa zero no transporte público aliviou o congestionamento no trânsito ao incentivar motoristas de carros particulares a migrarem para o transporte coletivo. Essa abordagem combinada diminui as emissões de poluentes e o consumo de combustíveis fósseis, promovendo uma mobilidade mais sustentável (Margarita et al., 2024).
O discurso político, frequentemente repetido por governadores, deputados, prefeitos, vereadores e empresas terceirizadas, alega que o modelo de gratuidade no transporte público é inviável devido aos elevados custos associados à sua implementação. No entanto, apesar dos benefícios evidentes, como inclusão social, estímulo econômico e redução de emissões, a sustentabilidade financeira do modelo continua sendo alvo de debate. Em São Paulo, por exemplo, estudos indicam que universalizar a tarifa zero poderia consumir até 20% do orçamento municipal, destacando a magnitude do desafio financeiro (CNT, 2024).
Modelos alternativos de financiamento, como o Versement Mobilité francês, podem oferecer soluções adaptáveis à realidade brasileira. Essa política estabelece a taxação de empresas com mais de 11 funcionários, redirecionando os recursos arrecadados para subsidiar o transporte público (Gouvernement Français, 2024), demonstrando como a mobilidade urbana pode ser planejada de forma sustentável, criando um sistema menos dependente de repasses diretos do orçamento público.
É preciso lembrar que a viabilidade de políticas como a tarifa zero exige mais do que apenas fontes de financiamento inovadoras; demanda um planejamento integrado do sistema de mobilidade urbana como um todo. É necessário que o planejamento contemple não apenas o transporte coletivo (ônibus, trilhos, embarcações e outros), mas também sua interação com os demais modais, como ciclovias, calçadas acessíveis e sistemas de transporte ativo. Sem essa visão do todo envolvido no planejamento da mobilidade urbana, a eficiência operacional, a qualidade do serviço e a sustentabilidade ambiental do modelo podem ser comprometidas, perpetuando desafios que poderiam ser evitados com um planejamento mais abrangente e proativo.
Para além do discurso, a implementação do transporte gratuito requer mais do que recursos financeiros. Planejamento da mobilidade do cidadão é essencial para evitar problemas como superlotação e deterioração do serviço e todos os demais problemas enfrentados pelas Marias, Pedrinhos e Joãos. Em Palmas (TO), a implantação abrupta do FPT resultou em ônibus lotados e insatisfação dos usuários, destacando a importância de projeções realistas de demanda e ajustes contínuos na oferta (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos NTU 2024).
Existe também a possibilidade do uso de receitas extratarifárias muito comuns, como a exploração comercial de terminais e pontos de ônibus ou a taxação de congestionamento, que pode aliviar a pressão sobre os cofres públicos. Maricá exemplifica como os royalties do petróleo podem ser utilizados de forma inteligente, financiando o transporte gratuito e, simultaneamente, impulsionando a economia local (Prefeitura de Maricá, 2024 / WRI Brasil 2024).
Se as lições aprendidas em cidades como Maricá e Caucaia — ou ainda em vários países mundo afora — fossem aplicadas em escala nacional, o impacto na vida de famílias como a de Maria seria transformador. A gratuidade no transporte público permitiria que mães solo como ela economizassem não apenas dinheiro, mas tempo, um recurso escasso e precioso. Sem o peso das tarifas, o trajeto até o trabalho não seria apenas mais barato, mas menos angustiante. Pedrinho poderia sonhar com um futuro diferente do presente que conhece, onde estudar e brincar não seriam pensamentos descabidos para a realidade que enfrenta aos seis anos.
A gratuidade no transporte público não resolve todos os problemas da desigualdade, que há séculos vem sendo perpetuada por meio de políticas públicas que privilegiam poucos setores e grupos da sociedade civil. No entanto, pode ser um primeiro passo em direção a cidades mais justas. Maria não escolheu morar longe e em condições precárias; essa realidade lhe foi imposta pela falta de opções que enfrentou desde que nasceu: na mesma condição que tem hoje, infelizmente. A tarifa zero reduz a carga financeira das famílias vulneráveis, estimula a economia local e contribui para a construção de um ambiente urbano mais sustentável.
Maria talvez ainda precise lutar muito para oferecer um presente digno e um futuro melhor aos filhos, mas, com o transporte gratuito, essa luta se torna um pouco menos desigual. Contudo, a esperança de que Pedrinho e João rompam o ciclo de pobreza dependerá não apenas de sua resiliência, mas também da colaboração de outros setores da sociedade e da vontade política de agentes públicos, que precisam priorizar políticas inclusivas e sustentáveis para transformar a realidade de milhões de brasileiros.
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.