Quando a verticalização extrema reflete não apenas ambição imobiliária, mas a cristalização de abismos sociais

A cidade não é apenas um conjunto de edifícios, mas um espelho que reflete, em concreto e vidro, os valores e princípios da sociedade que a constrói. Quando observamos Balneário Camboriú e seus edifícios altíssimos — como a Senna Tower, de 500 metros e apartamentos de R$ 300 milhões —, não estamos diante de meras opções estéticas. Trata-se de um manifesto ético estampado na paisagem local, em que cada andar simboliza a escolha de priorizar o luxo de poucos em detrimento do bem-estar coletivo. A estética segue a ética. Portanto, discutir a cafonice ou a breguice do edifício é, na verdade, questionar os valores morais que ele representa e o tipo de sociedade que escolhemos ser quando erguemos torres milionárias enquanto milhões de brasileiros vivem sem moradia digna. A crítica estética torna-se, assim, crítica social — e ambas são urgentemente necessárias para repensarmos nossa forma de habitar as cidades. E mais: com a ciência, anuência e incentivo de atores políticos.
A célebre máxima modernista “a forma segue a função”, que orientou gerações de arquitetos na busca por equilíbrio entre estética e utilidade, parece ter sido suplantada por um novo conceito: “a forma segue o lucro”. Em Balneário Camboriú e em outras metrópoles brasileiras, a verticalização desmedida não responde à necessidade de abrigar populações ou democratizar o espaço urbano, mas à lógica especulativa que converte a cidade em commodity. Edifícios deixam de ser lugares de vida para se tornarem ativos financeiros, valorizados não por sua adequação ao território ou às demandas sociais, mas por algoritmos de mercado que medem rentabilidade em cifras. A discussão, embora antiga entre urbanistas, ganha urgência diante da mercantilização radical do espaço: calçadas estreitas para ampliar torres, praias sombreadas por gigantes de concreto, bairros inteiros transformados em cartões-postais para investidores globais.
Enquanto prédios como o “supertall” da Senna Tower (não confundir a marca Ayrton Senna com o piloto) empregam tecnologias de ponta — como o Tuned Mass Damper, sistema que reduz oscilações em alturas estratosféricas — para garantir conforto a um grupo social de alto poder aquisitivo, a maioria da população enfrenta transporte precário, infraestrutura colapsada e ausência de políticas habitacionais. A pergunta que se impõe não é sobre a engenhosidade técnica, mas sobre o retorno urbano: qual o benefício coletivo de um edifício que consome recursos públicos (água, energia, solo) e devolve à cidade apenas sombra e segregação? Quando a arquitetura se rende à especulação, o urbano deixa de ser um projeto de convivência para virar negócio — e o “progresso” se revela, na prática, como a estratificação vertical do acesso à dignidade. O desafio, portanto, não está em construir mais alto, mas em decidir para quem e para que se constrói. O resultado é a gentrificação, a padronização arquitetônica — com torres espelhadas replicáveis em qualquer metrópole — e o aprofundamento da desigualdade urbana em que áreas VIP contrastam com zonas esquecidas pelo poder público.
Essa relação entre ética e estética não é nova. Brasília, projetada para ser símbolo de democracia e modernidade, acabou reproduzindo hierarquias sociais em sua própria configuração espacial. O Plano Piloto, com suas superquadras monumentais, consolidou-se como território de quem podia pagar e morar nelas, enquanto as cidades-satélites e assentamentos periféricos concentraram a população de menor renda em condições de maior precariedade urbana. O que Brasília fez no plano horizontal, Balneário Camboriú e inúmeros condomínios verticais em cidades brasileiras repetem na dimensão vertical ao estratificar a sociedade.
O problema, portanto, não está na verticalização em si, mas nos valores que ela escancara na paisagem. Quando um edifício reserva seis pavimentos para lazer privativo, incluindo elevadores para carros estacionarem em suas salas de estar, enquanto a cidade sofre com transporte público precário, a mensagem subliminar leva a pensar que o direito ao ócio é privilégio de quem pode pagar por ele. A ética aqui se revela na materialidade dos materiais, acabamentos e chancelas públicas, nacionais e internacionais e aos muros invisíveis que reconstituem em seu conceito.
O poder público, nesse teatro urbano, atua como coautor dessa empreitada. No site oficial do empreendimento não há menção às contrapartidas sociais exigidas (como habitação popular integrada ou investimento em infraestrutura pública), evidenciando como prefeitos e legisladores normalizam a transformação da cidade em produto de luxo.
Repensar a arquitetura das cidades é, antes de tudo, repensar nossa ética como sociedade. Não se trata de abolir torres, mas de exigir que elas sirvam a todos e não apenas ao ego de seus moradores. Que incluam espaços públicos ensolarados, que se abram para as calçadas, que respeitem as condições naturais, que seus moradores paguem impostos capazes de financiar políticas urbanas vez que se apropriaram de sua infraestrutura. A verdadeira “obra de arte” urbana aponta para uma convivência coletiva.

Siga o canal da Jovem Pan News e receba as principais notícias no seu WhatsApp!
Enquanto isso, Balneário Camboriú segue como caricatura do Brasil que escolhemos ser, representando na paisagem urbana uma sociedade que consegue ser desigual sempre. Resta saber se outras cidades terão coragem de escrever uma história diferente em que a arquitetura não seja monumento à ganância e ao ego, mas ponte sobre os abismos que nós mesmos cavamos. Lugares em que a discussão sobre beleza arquitetônica não seja mero adereço, mas expressão genuína de justiça espacial.
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.