O mercado chinês de medicamentos deixou de ser apenas um polo de insumos farmacêuticos ativos (IFAs) para se tornar, nas últimas décadas, um dos maiores e mais estratégicos produtores de medicamentos prontos para uso no mundo. Esse avanço não é apenas quantitativo, mas qualitativo. O que antes era visto com desconfiança, hoje desperta o interesse de grandes mercados regulados, inclusive com reconhecimento formal de sua crescente maturidade regulatória.
Excluir a China da política de reliance limita o acesso a medicamentos de qualidade e preços competitivosAllison Sales/Folhapress
A China modernizou radicalmente seu sistema de controle sanitário por meio da National Medical Products Administration (NMPA), sua agência reguladora, que se alinhou progressivamente às boas práticas internacionais. Um marco decisivo foi a adesão formal da NMPA ao International Council for Harmonisation of Technical Requirements for Pharmaceuticals for Human Use (ICH) em 2017. O ICH é uma plataforma global de harmonização de critérios regulatórios composta por autoridades sanitárias e a indústria farmacêutica, responsável por estabelecer padrões técnicos comuns para garantir qualidade, segurança e eficácia de medicamentos.
Desde então, a China tem promovido reformas internas profundas, aderindo a guidelines internacionais, investindo em processos de revisão científica mais rigorosos e adotando sistemas de farmacovigilância comparáveis aos de países como Estados Unidos, Canadá, Japão e União Europeia. Na prática, muitos medicamentos produzidos na China hoje seguem padrões técnicos mais exigentes do que os praticados no Brasil. Isso coloca em xeque o olhar ainda conservador com que muitas vezes tratamos produtos de origem chinesa.
No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ainda não reconhece a autoridade chinesa como elegível para procedimentos de reliance, ou seja, para a simplificação do registro de medicamentos já aprovados por outras agências consideradas de referência. A lista atual da Anvisa é restrita e contempla agências como EMA, FDA, Health Canada e PMDA. No entanto, a exclusão da NMPA dessa política cria um gargalo importante, que limita o acesso a medicamentos de qualidade, com preços mais competitivos e ampla oferta.
A atualização dessa regra é urgente. O reliance é um instrumento técnico de racionalização do processo regulatório e já é adotado pela OMS e por diversas autoridades sanitárias em contextos emergenciais e de escassez. Reconhecer o avanço da regulação chinesa e integrá-la ao rol de autoridades confiáveis ampliaria a capacidade do Brasil de responder mais rapidamente a demandas de saúde pública e a crises de abastecimento, como já se viu em medicamentos oncológicos, antibióticos e, mais recentemente, produtos biológicos.
É necessário que a Anvisa, com sua excelência técnica já consolidada, olhe com pragmatismo para o novo cenário global. Não se trata de flexibilizar critérios, mas de reconhecer avanços concretos de parceiros estratégicos. A China já não é apenas a “farmácia do mundo” em volume – é também um polo de qualidade regulatória em expansão. E o Brasil, se quiser garantir segurança sanitária com eficiência e acesso, precisa estar preparado para isso.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].