Com Sicobe (Sistema de Controle de Produção de Bebidas) desativado há 9 anos, sonegação cresce 86%; estimativa mostra que tráfico fatura mais com bebidas ilegais do que com cocaína
O Brasil perdeu pelo menos R$ 88 bilhões de reais em arrecadação tributária em um ano. Segundo o Anuário da ABCF (Associação Brasileira de Combate à Falsificação), o valor representa apenas as perdas com sonegação e falsificação no setor de bebidas em 2024. Eis a íntegra do estudo (PDF – 5 MB).
A ausência de rastreabilidade é uma barreira para o combate à sonegação. Hoje, a fiscalização depende da autodeclaração das empresas fabricantes. Isso cria um modelo vulnerável à fraude fiscal, diz o anuário.
Desde 2016, o Brasil perdeu a capacidade de monitorar o volume total de bebidas em circulação no território nacional. A culpa foi o desligamento do Sicobe (Sistema de Controle de Produção de Bebidas), um sistema criado e gerido pela Receita Federal para fiscalizar em tempo real a produção do setor.
Implantado em 2008, o Sicobe exigia que as fábricas instalassem equipamentos eletrônicos nos maquinários de envase –como sensores e câmeras– que monitoravam cada garrafa ou lata produzida.
As informações eram enviadas aos sistemas da Receita, permitindo o cruzamento de dados com notas fiscais e tributos pagos.
O sistema funcionou por 8 anos e chegou a aumentar a arrecadação em 23% apenas no 1º ano de operação, conforme estimativas do ABCF. Hoje, são R$ 30 bilhões por ano que o governo deixa de arrecadar sem o Sicobe.
Dados da Receita Federal mostram que a média anual de arrecadação com bebidas caiu cerca de 38% em relação ao período em que o sistema estava ativo. Uma pequena recuperação até 2019 foi registrada, mas os valores caem de forma consistente a partir de 2020.
Quando o Sicobe esteve ativo de forma plena, a arrecadação anual deflacionada com bebidas teve média de R$ 5,41 bilhões, com pico de R$ 6,36 bilhões em 2013.
Após a desativação do Sicobe, de 2017 a 2023, a média anual recuou para R$ 3,24 bilhões.
A Receita Federal fala que religar o Sicobe custaria R$ 1,8 bilhão ao ano –para uma arrecadação tributária de R$ 20 bilhões em 2024 segundo a ABCF.
Desses recursos não arrecadados no setor, R$ 56,9 bilhões foram para receitas ilícitas vinculadas ao crime organizado, conforme dados do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública).
O número é 224% maior do que em 2017 –um ano depois do Sicobe ser desligado. Confira o levantamento(PDF – 2,9 MB).
A situação se agravou a ponto de organizações criminosas lucrarem mais com o tráfico de bebidas falsificados do que com o de cocaína, diz o FBSP.
Rodolpho Ramazzini, diretor da ABCF, diz que o objetivo não é defender o Sicobe, mas sim garantir o cumprimento da Lei nº 8.918.
A norma determina que a fiscalização deve abranger desde as fábricas até pontos de fronteira, portos, aeroportos, depósitos e locais de transporte. Porém, sem Sicobe, o setor afirma que há um vácuo entre o que a lei determina e o que acontece na prática.
Eis os números do mercado de bebidas ilegal do Brasil, segundo ABCF:
- Domina 36% do mercado de destilados;
- Cerca de 36% do volume dos produtos falsificados e contrabandeados chegam aos consumidores em plataformas de e-commerce;
- Apreensões de bebidas falsificadas aumentaram 86,8% em 2024;
- Perdas saltaram para US$ 83 bilhões anuais –salto de 34% no prejuízo total.
O CASO SICOBE
Enquanto o governo busca aumentar a arrecadação para equilibrar as contas, abdica de um sistema que pode recuperar R$ 15,8 bilhões por ano em receita –segundo pesquisa da FEA-USP (Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo).
Em 2024, o TCU (Tribunal de Contas da União) determinou o retorno do Sicobe. A Receita Federal recorreu. Por meio da AGU (Advocacia-Geral da União), foi ajuizado um mandado de segurança no STF (Supremo Tribunal Federal).
No mandado de segurança, a AGU defendeu que a Receita Federal tinha autoridade para desligar o Sicobe e que o TCU extrapolou suas funções ao ordenar seu retorno.
O governo também apresentou argumentos financeiros. Disse que a Receita gasta todos os anos com seus sistemas informatizados R$ 1,7 bilhão –menor que o custo de R$ 1,8 bilhão anual do Sicobe.
Somado aos R$ 1,4 bilhões para manter a operação, o custo total equivaleria à contratação de cerca de 4.300 novos auditores fiscais.
Em 2025, o STF (Supremo Tribunal Federal) suspendeu a decisão do TCU por meio de liminar.
O setor de bebidas também tem resistido à implementação de controles eletrônicos. Entre os principais beneficiários da manutenção do sistema desligado está o Grupo Petrópolis (dono de marcas como Itaipava, Crystal e Petra).
Em 2009, o grupo obteve liminar judicial para não aderir ao Sicobe, decisão posteriormente suspensa pelo TRF-1. E por meio de entidades como CervBrasil e Sindicerv articularam ações judiciais para manter o sistema inativo.
O proprietário do Grupo Petrópolis, Walter Faria, foi investigado por lavagem de dinheiro em esquema de pagamento de propina da Odebrecht. O esquema, com políticos do então PMDB, ocorreu antes da desativação do Sicobe por decisão do então presidente Michel Temer.
O MPF (Ministério Público Federal) denunciou Faria por atuação em 642 atos de lavagem de dinheiro que movimentaram mais de R$ 1,1 bilhão.
Agora, com a fiscalização enfraquecida, o governo brasileiro ainda não sabe o real tamanho da indústria –nem dessas fraudes.
O novo modelo de rastreabilidade do Rota Brasil, programa que está sendo implementado em parceria com a Casa da Moeda, é classificado por Ramazzini como apenas “ok”.
O programa da Receita Federal foi instituído em 2022. Usa selos digitais integrados à NF-e (nota fiscal eletrônica) para rastrear a produção. Será obrigatório para bebidas e cigarros, e opcional para outros setores. Só que ainda não saiu do papel.
Entre as opções discutidas até agora, Ramazzini avalia que o Sicobe foi o sistema mais viável tecnicamente.
O Poder360 procurou a Receita Federal por meio de e-mail e telefone para perguntar se gostaria de se manifestar a respeito dos dados de arrecadação e a possível relação com a desativação do Sicobe. Não houve resposta até a publicação desta reportagem. O texto será atualizado caso uma manifestação seja enviada a este jornal digital.