Quando a paisagem urbana deixa de ser memória coletiva, vira vitrine descartável

Quando a paisagem urbana deixa de ser memória coletiva, vira vitrine descartável


Em cidades que flexibilizam a lei, o espaço público se esvazia de sentido e o pertencimento é engolido pela lógica do marketing

Reprodução/Instagram/@virismomentsMcDonald's
Azul-turquesa adotado pelo McDonald’s em Sedona respeita paleta da paisagem local e contribui para uma experiência urbana harmônica

Marcas globais colonizam o espaço urbano ao ocupá-lo com suas cores padronizadas, mas o McDonald’s azul-turquesa de Sedona, no Arizona, tornou-se mais do que uma curiosidade arquitetônica, manifestando a soberania territorial, geográfica e cultural por meio da adequação das cores da marca. A substituição dos arcos dourados por uma paleta que respeita a paisagem local revela, que para seus moradores, a cidade não é um outdoor. Ela é um pacto entre habitantes, território e tempo.

Sedona, com menos de 10 mil habitantes, ensina algo que São Paulo, com seus 12 milhões, parece ter esquecido: que a paisagem urbana é também cultural, ou ainda, expressando camadas históricas, simbólicas e afetivas, que não se resumem à arquitetura ou à geografia. Inclui cores, texturas, sons, usos e sentidos compartilhados. E como todo bem cultural, exige governança.

O que poderia parecer uma exceção estética em Sedona é, na verdade, resultado de normas técnicas estabelecidas desde os anos 1990 por meio de um Código de Desenvolvimento Urbano da cidade, que exigiu que cores e materiais se integrem visualmente às rochas vermelhas e ao ambiente desértico do local. Desta forma, índices de refletância, saturação e brilho são regulados, proibindo superfícies metálicas e tons berrantes, por assim dizer. Em outras palavras, as empresas devem se adaptar à regulamentação urbana.

Não se trata de “engessar” a cidade, mas de preservar o espírito do lugar (genius loci) num território moldado por geologia, espiritualidade e práticas culturais ligadas à natureza. O azul-turquesa adotado pela franquia local não apenas respeita a paleta natural da paisagem local, mas também contribui para uma experiência urbana harmônica. Se os vereadores e o prefeito não entenderam, reitero: é política pública aplicada com coerência estética e cultural, respeitando a geografia e características históricas locais.

Enquanto isso, em São Paulo, a paisagem da Avenida Paulista e de 70% da cidade é entregue ao mercado. O mesmo McDonald’s que aparece coberto de roxo vibrante hoje em uma ação promocional é tratado como inovação de marketing, revelando uma cidade que autoriza, sem mediação ou regulação, a apropriação visual do espaço público por empresa privada. Se os vereadores e o prefeito não entenderam, reitero: o que aconteceu na cidade de Sedona, com a mesma empresa, é política pública aplicada com coerência estética e cultural que respeita a geografia e características históricas da paisagem urbana local.

A invasão cromática revela uma permissividade institucional que transforma a cidade em fundo publicitário. Sem critérios que reconheçam a paisagem como bem comum, cores corporativas apagam memória e pertencimento, resultando em uma paisagem esvaziada de sentido, convertida em vitrine descartável a serviço do marketing.

O problema se agrava com a proposta recentemente aprovada em primeira votação na Câmara Municipal de São Paulo, que flexibiliza a Lei Cidade Limpa. A nova redação autoriza anúncios em locais antes protegidos, que incluem fachadas de edifícios tombados. Permitir que 70% de um monumento histórico seja coberto por publicidade não é uma ação neutra e representa um gesto político que desmonta o pacto urbano que sustentava a Lei desde sua criação, em 2006.

A justificativa é a mesma de sempre: atrair investimentos, gerar empregos, modernizar. O que significa modernizar? A quem serve essa modernização? Ao liberar a ocupação comercial de espaços sensíveis sem qualquer debate qualificado com urbanistas, arquitetos, sociólogos, moradores e instituições de patrimônio, os vereadores e o Executivo sinalizam, para dizer o mínimo, o descompromisso com a identidade local construída pelas pessoas, tratando-a como terreno de negócio, e não como plataforma pública de vida.

A Lei Cidade Limpa foi capaz de recuperar o horizonte da cidade, reduzir a saturação visual, valorizar o espaço construído. Alterá-la sem cuidado técnico e sem escuta pública equivale a desfigurar a cidade por meio da ausência de regras públicas para disciplinamento. A Unesco e o Iphan já reconheceram que paisagens culturais urbanas são bens complexos, formados por traçados, arquiteturas, relações sociais, usos do solo e atmosferas. O conceito de Historic Urban Landscape, adotado internacionalmente desde 2011, propõe integrar conservação e desenvolvimento, respeitando os valores culturais e visuais locais como parte da qualidade de vida urbana.

Esses princípios o favorecem turismo cultural, fortalecem a identidade de cada cidade e criam condições de convivência equilibrada entre dinâmicas econômicas e sensibilidade urbana, mostrando o direito à cidade não é só o de ir e vir, mas também é o de ver e se reconhecer no que se vê. Não parece lógico?

A diferença entre Sedona e São Paulo encontra-se na escolha política que ela traduz: “a cidade de Sedona vem antes da marca”, enquanto a Prefeitura de São Paulo responde que “a marca vem antes da cidade”. Esse embate revela o que está em disputa: quem decide o que pode ser visto, vivido e sentido no espaço urbano. É uma disputa entre o pertencimento e o espetáculo, entre o bem comum e o branding.

A pergunta que se impõe é direta: quais cores nossa democracia urbana está disposta a defender? A resposta exigirá mais do que designers. Requer governos atentos, comunidades participativas e uma legislação que reconheça na paisagem um espelho coletivo, não uma superfície de aluguel.

A tentativa de alteração da Lei Cidade Limpa escancara essa lógica. Ela não moderniza nem democratiza, apenas amplia a presença da publicidade nos vazios deixados pela ausência de visão pública sobre a paisagem urbana e todos seus atributos. E, no fim, o que está em jogo não é apenas a cor. É o pacto que ela representa. E quando esse pacto exclui o olhar coletivo, a cidade inteira passa a falar com a voz de quem paga mais alto por um espaço para gritar, expor-se, sobressair-se.

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*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.





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