Moletom preto com o rosto da filha de dois anos, calça jeans básica, óculos de grau discretos, copo Stanley rosa pink – e o cabelo, é claro, cuidadosamente arrumado para parecer desarrumado. Cada elemento do visual de Virginia Fonseca ao chegar na CPI das Bets cumpria uma função: construir a estética de uma mulher comum, mãe dedicada, sensível, quase deslocada daquele ambiente hostil que é o Senado. Mas nada ali era fortuito. A influenciadora não apenas entrou, ela ocupou o centro de uma encenação meticulosamente roteirizada. Ali, não estava uma cidadã comum convocada para colaborar com uma investigação legislativa de interesse público. Estava uma figura midiática, moldada para produzir comoção e desviar o olhar do essencial: a responsabilização pelos impactos da promoção de jogos de azar no Brasil.
Influencer não respondeu como testemunha: operou sua marca com linguagem publicitária, estética da pureza e blindagem branca.Marcos Oliveira/Agência Senado
Convocada como testemunha, e não como investigada, Virginia acendeu uma vela para Deus e outra para internet: “Deus abençoe nossa audiência. Bora pra cima” – disse ela antes de depor. Não estava ali para se defender, estava para marcar presença, com o mesmo domínio de palco que exibe em publis e stories. E, ao fazer isso, deu o tom de uma CPI que, ao invés de apurar responsabilidades, optou por produzir afeto e engajamento.
Mobilizou recursos retóricos e simbólicos que sugerem inocência, fragilidade e até certo desconforto por estar ali. Não se tratou de esclarecer fatos – como caberia a uma testemunha comprometida com a verdade -, mas de administrar sua imagem sob os holofotes do Senado Federal.
O moletom com o rosto da filha Maria Flor e a expressão “flo flo biuta” não foi um gesto espontâneo de afeto maternal. Foi um artefato de linguagem. É uma operação semiótica. Ativa o arquétipo da maternidade doce, cuidadora, inofensiva – imagem que, historicamente, se associa à pureza e à bondade. No Brasil, porém, nem toda maternidade é lida da mesma forma. Quando a mãe é branca, jovem, rica e midiaticamente encantadora, sua imagem se converte em escudo moral. A maternidade, nesse caso, é defesa simbólica, mas também é argumento jurídico latente.
Em um país marcado por desigualdades estruturais e racismo institucional, onde a performance de inocência é um privilégio seletivo, essa vestimenta se converte em blindagem. A maternidade, nesse contexto, é ativada como ferramenta simbólica de absolvição moral. O senso comum associa à mãe a ideia de sacrifício, bondade e dedicação. É uma figura que não ameaça – logo, não pode ser responsabilizada.
Contudo, essa blindagem simbólica encontra respaldo no plano jurídico. O ordenamento brasileiro prevê tratamento diferenciado a mulheres gestantes, puérperas e mães de filhos menores de 12 anos, especialmente no que se refere à substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar. O Habeas Corpus coletivo nº 143.641, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, reconheceu esse direito como forma de assegurar o interesse superior da criança e o princípio da dignidade da pessoa humana.
Mas essa garantia, que deveria ser universal, esbarra em um sistema penal racista e seletivo. Na prática, a Justiça não aplica com a mesma generosidade os direitos às mulheres negras, periféricas, empobrecidas. A maternidade negra é criminalizada, não redentora. A mulher preta, quando sentada no banco dos réus, raramente encontra empatia – mesmo quando amamenta, mesmo quando é a única cuidadora dos filhos. A CPI, cuja finalidade deveria ser a apuração rigorosa de fatos, converteu-se em vitrine. E não por desvio individual, mas por falência institucional. Quando o rito da CPI cede à lógica do entretenimento, ela deixa de cumprir sua função republicana. A ausência de perguntas relevantes, a substituição de contraditório por fotos, a ausência de questionamentos técnicos sobre a responsabilidade civil e administrativa de quem lucra com apostas – tudo isso revela um Parlamento mais interessado em engajamento digital do que em justiça social.
Na CPI das Bets, a blindagem de Virginia não se deu apenas pelo habeas corpus que lhe permitia o silêncio, mas pela própria performance de quem domina os afetos da branquitude. Sua roupa, seus trejeitos e a própria escolha de estar acompanhada pelo marido, Zé Felipe, reforçam uma narrativa de mulher pública que é, antes de tudo, esposa, mãe e “do bem”. Não por acaso, em vez de confrontos técnicos, vimos parlamentares pedindo recados para familiares, tirando selfies, e se rendendo à lógica do espetáculo.
Trata-se de um processo sofisticado de espetacularização da inocência, em que a função fiscalizatória da CPI é soterrada sob o peso da influência digital. O Parlamento, que deveria estar debatendo os efeitos devastadores das apostas na juventude brasileira, limitou-se a curtir a presença de uma celebridade.
Mas a estratégia não é nova. Nos anos 2000, Suzane von Richthofen compareceu ao Fantástico de camiseta cor de rosa e presilhas coloridas no cabelo – tentativa clara de parecer frágil e infantilizada, apesar de condenada por arquitetar o assassinato dos pais. Ali também a narrativa da branquitude atuava para suavizar, para gerar empatia, para transformar crime em “erro juvenil”. Com Virginia, outro exemplo de como a branquitude opera narrativas de autoperdão, o roteiro é semelhante, ainda que adaptado à linguagem das redes: cabelo imperfeitamente perfeito, copo Stanley com lettering, enquanto o país sangra sob o avanço da indústria dos jogos.
Virginia pode não estar vendendo “bets” naquele momento – mas segue vendendo algo mais rentável: o direito de parecer inocente. A branquitude, quando combinada com carisma e domínio digital, constrói sua própria jurisprudência afetiva. E isso não é só sobre ela: é sobre a manutenção de uma lógica de proteção e poder que jamais se estende às mulheres racializadas.
No fundo, a pergunta é incômoda, mas necessária: o que são esses influencers que promovem apostas online, senão bicheiros com glitter e wi-fi? Mudou o figurino, o meio de difusão, a embalagem – mas o produto é o mesmo: o lucro sobre a esperança alheia. Antes, eram homens cafonas de paletó branco em becos. Hoje, são mulheres igualmente cafonas de moletom preto em links patrocinados. A banca segue ganhando. E o povo, como sempre, perdendo.
Da mesma forma, Virginia não vendeu “bets” durante a CPI. Mas vendeu algo mais potente: a imagem de que sequer saberia o que estava fazendo. O uso do jargão publicitário, o apelo à maternidade, o uso de elementos que remetem à “vida real” – como o copo Stanley – compõem uma estética que comunica simplicidade, mesmo quando se trata de uma empresária milionária com contratos que impactam milhares de consumidores.
O mais perverso, porém, é o conteúdo subjacente a essa performance: a possibilidade de que o capital simbólico da branquitude continue a proteger os seus – inclusive de investigações sérias e legítimas. Porque, no fim, o que vemos é uma CPI que, ao invés de mirar nas estruturas econômicas que permitem o alastramento das apostas como forma de exploração, se curva diante do carisma midiático.
Sou eu quem diz: “Deus abençoe!” Pois que Deus abençoe, então – os apostadores viciados, as famílias mergulhadas em dívidas, as crianças que já deslizam o dedo em aplicativos de aposta antes mesmo de aprender a somar. Que Deus ampare os idosos desamparados, que perdem suas aposentadorias para o tigre esse novo monstro digital que já supera o medo que tínhamos do leão do imposto de renda. Que Deus abençoe quem vende o jantar acreditando na jogada de sorte que garantirá comida pra vida toda.
E que venha o “bora pra cima” – daqueles que exploram a esperança alheia, que lucram com a miséria cotidiana, tiram a comida da boca de quem já sente fome e transformam desespero em produto vendável.
O que se ergue diante de nós é um empreendimento juridicamente blindado, emocionalmente manipulativo e socialmente devastador – onde o “entrega, Senhor” cruza com o jackpot, e a falência popular vira o verdadeiro trend jurídico da temporada.
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