Congresso em Foco

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No segundo mandato de Donald Trump, os Estados Unidos não estão apenas revertendo políticas de inclusão. Estão institucionalizando a exclusão como doutrina de Estado. O caso da deputada federal Erika Hilton (Psol-SP) e Duda Salabert (PDT-MG), que teve sua identidade de gênero desconsiderada durante o processo de emissão de visto diplomático, escancara essa realidade. Mais do que um incidente isolado, trata-se de um alerta internacional: o trumpismo agora opera também como política externa, e como instrumento diplomático de transfobia.

Negação de visto diplomático a parlamentares trans expõe uso da burocracia como ferramenta de exclusão nas relações internacionais

Negação de visto diplomático a parlamentares trans expõe uso da burocracia como ferramenta de exclusão nas relações internacionaisFlickr/The White House

Erika Hilton apresentou um passaporte oficial emitido pelo Estado brasileiro, em plena conformidade com a legislação nacional que reconhece sua identidade de gênero. Mesmo assim, foi informada de que seu visto seria processado com o marcador de gênero masculino, em flagrante desrespeito não apenas aos seus direitos humanos, mas também à soberania do Brasil. Este gesto ideológico e amparado por ordem executiva assinada por Trump, viola tratados internacionais, compromissos diplomáticos e a ética mínima das relações entre Estados.

Desde o primeiro dia do segundo mandato, Trump tem promovido uma ofensiva sistemática contra pessoas trans. O decreto presidencial 14168 declarou que existem apenas dois sexos, definidos no nascimento e imutáveis, e impôs essa visão biologicista como política oficial do Estado americano. Essa diretriz já resultou em revogação de identificações com gênero neutro, como passaportes e formulários oficiais; proibição de militares trans nas Forças Armadas; cancelamento de políticas educacionais inclusivas, como o direito a nome social e banheiro por identidade de gênero e perseguição ativa a imigrantes trans, frequentemente colocados em prisões que não correspondem ao seu gênero. Na prática, o governo norte-americano passou a operar uma política trans-excludente com impacto direto em políticas públicas de saúde, educação, mobilidade internacional, trabalho e segurança.

Neste contexto, o caso de Hilton e Salabert é consequência de uma nova agenda MAGA. A negativa de reconhecimento à identidade de uma parlamentar brasileira, eleita democraticamente e em missão oficial, representa uma ruptura sem precedentes nas práticas consulares entre dois países aliados. O Itamaraty, ainda que de forma tímida, reconheceu a gravidade do episódio e prometeu analisar medidas. Mas o silêncio das autoridades americanas bem como sua justificativa baseada em norma interna, só reforçam a institucionalização da transfobia como política de Estado.

Negar o marcador de gênero de um passaporte oficial é mais que um erro consular, é uma violação da soberania documental do Brasil e um veto simbólico à existência de parlamentares trans. Ao impor classificações arbitrárias a figuras como Duda Salabert e Erika Hilton, os EUA desrespeitam decisões jurídicas brasileiras e impõem barreiras morais disfarçadas de procedimentos técnicos.

Sob Trump 2.0, pessoas trans tornaram-se alvo prioritário da guerra cultural. Em 2025, 24 estados norte-americanos proíbem atletas trans em esportes escolares; 20 restringem cuidados de afirmação de gênero; 11 revogaram o reconhecimento legal da identidade trans. A violência contra pessoas trans, especialmente negras, bateu recordes, e o apoio à sua presença nas Forças Armadas caiu para 58% para apenas 23% entre republicanos (Gallup, fev. 2025).

O caso Hilton lança uma questão essencial ao campo das relações internacionais: até onde um Estado pode impor doutrinas morais internas nas relações com estrangeiros? A doutrina consular é clara: documentos oficiais emitidos por Estados soberanos devem ser respeitados por outros Estados, salvo em casos de fraude. O que os EUA fizeram, ao ignorar o marcador de gênero do passaporte diplomático brasileiro, foi romper com esse princípio. É uma forma disfarçada de sanção ideológica, e, uma ofensa direta ao Brasil. Mais do que isso: cria-se um precedente segundo o qual Estados poderão passar a rejeitar passaportes, diplomas ou certidões com base em critérios morais internos, corroendo os alicerces da cooperação internacional.

Negar a identidade de gênero de uma cidadã não é apenas uma violação moral é uma violação constitucional. Ao deslegitimar identidades trans em documentos oficiais, o Executivo afronta diretamente a 14ª Emenda (igual proteção legal), viola a jurisprudência da Suprema Corte sobre liberdade de autodeterminação e colide com a 1ª Emenda ao impor fundamentos religiosos à política de Estado. É o Estado sendo usado contra o próprio texto constitucional.

O Itamaraty, embora registre a preocupação com o caso, peca por não nomear o problema: transfobia institucional. Quando se trata de proteger representantes eleitas e os princípios constitucionais brasileiros, que reconhecem o nome e gênero social de pessoas trans, não há espaço para eufemismos. O episódio com Erika Hilton não é apenas uma afronta à sua dignidade pessoal. É uma tentativa deliberada de apagar sua representação política, sua existência institucional e seu papel como símbolo de inclusão democrática. A recusa americana em reconhecer sua identidade de gênero escancara o projeto de um mundo que nega os corpos dissidentes, questiona os direitos adquiridos e transforma a burocracia em trincheira ideológica. É um gesto de poder e exclusão e, como tal, deve ser denunciado com todas as letras. Ou o Brasil se levanta para defender suas cidadãs e seus princípios constitucionais, ou assiste calado à exportação do autoritarismo moral disfarçado de política externa.

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