Rússia e China aproveitam silenciamento do Voz da América pelos EUA

Rússia e China aproveitam silenciamento do Voz da América pelos EUA


Especialistas dizem que o fim da emissora internacional dos EUA deixa um vazio que regimes autoritários tentampreencher

Quando Donald Trump assinou um decreto para enfraquecer a agência governamental que supervisiona a VOA (sigla em inglês para Voz da América), entre os primeiros a celebrar estavam órgãos estatais russos e chineses. 

Hoje é uma celebração para meus colegas da ‘RT’, ‘Sputnik’ e outros veículos, porque Trump inesperadamente anunciou que está fechando a ‘Rádio Liberdade’ e a Voz da América, e agora elas estão fechadas. Essa é uma decisão fantástica”, disse Margarita Simonyan, editora-chefe da RT. 

O Global Times, um tabloide diário em inglês e porta-voz do Partido Comunista Chinês, publicou um editorial comemorando a decisão, classificando a VOA como uma “fábrica de mentiras” que divulga inverdades sobre a China.

Ao redor do mundo, a VOA forneceu algumas das reportagens mais perseverantes sobre países com meios de comunicação fortemente restritos, incluindo na África, que abriga algumas das nações com as classificações mais baixas no ranking de liberdade de imprensa do RSF (Repórteres sem Fronteiras). Com a possível desativação da VOA, quem mais se beneficiará do vazio que ela deixará no ecossistema de notícias africano? Eu conversei com 4 jornalistas e pesquisadores africanos para descobrir.

O VAZIO DEIXADO PELA VOZ DA AMÉRICA

No início de fevereiro, Elon Musk, que está atuando como o principal responsável pela redução de custos no governo Trump, defendeu o fechamento da VOA e da Rádio Europa Livre em um post no X. “Ninguém mais escuta [essas redes]”, disse ele, acrescentando que são apenas “pessoas loucas da esquerda radical conversando entre si enquanto queimam US$ 1 bilhão por ano do dinheiro dos contribuintes norte-americanos.

Embora o público geral dos Estados Unidos, talvez, não consuma amplamente o conteúdo produzido pela VOA (de 1948 até ser alterada em 2013, para se adaptar à era da Internet, a seção 501 do Smith-Mundt Act proibia a VOA de transmitir diretamente para cidadãos norte-americanos), ela tem grande sucesso com seu público-alvo no exterior.

De acordo com a USAGM (sigla para Agência dos Estados Unidos para Mídia Global), as redes que ela financia, incluindo a VOA, alcançaram 427 milhões de pessoas semanalmente, em mais de 63 idiomas e mais de 100 países em 2024. Para colocar isso em perspectiva, esse número supera amplamente outros radiodifusores internacionais financiados publicamente, segundo números auto-relatados pela BBC World Service e Deutsche Welle.

Somente na África, a rede fornece serviços em idiomas locais, incluindo suaíli, afaan oromoo, kinyarwanda, somali e tigrínia. Isso permite que a VOA alcance públicos em países como Eritreia, Somália e Ruanda, onde a bota do autoritarismo está pisoteando a liberdade de imprensa. De acordo com os últimos números da USAGM, eles têm um público de mais de 93 milhões somente na África Subsaariana. O que acontecerá com essas audiências agora?

O jornalismo tem sido essencial nesses lugares e para garantir que esses governos sejam responsabilizados”, disse uma jornalista da VOA, que está atualmente em licença administrativa e com quem falei sob condição de anonimato.

A jornalista disse que o fim da VOA na África poderia criar um vazio que outros atores estão ansiosos para preencher. Com menos cobertura internacional, ela explicou, governos autoritários na África poderiam exercer maior controle sobre seus cidadãos.

Isso está criando um vazio estratégico para adversários”, ela afirmou. “Se a reportagem objetiva baseada em fatos deixar de existir, isso enfraquece o alcance da VOA, que é um pilar essencial para dizer a verdade, mas também abre espaço para adversários como Irã, Rússia e China, para dominar o cenário de informações.

Nem todos concordariam que a VOA é um pilar na divulgação da verdade. Atores como China e Rússia, previsivelmente, classificaram a cobertura da VOA como mentiras e propaganda. Mas autoridades locais também atacaram a agência, e o decreto de Trump se referiu à VOA como “propaganda radical”. Quando Kari Lake foi escolhida como a nova diretora da VOA, ela prometeutrazer de volta alguns jornalistas de verdade” e combater as “notícias falsas”.

Há muita incompreensão sobre o que fazemos”, disse a jornalista da VOA com quem falei. “Somos uma instituição independente de jornalismo baseado em fatos. A VOA adere a padrões jornalísticos como precisão, equilíbrio, justiça, fornecendo ao público informações confiáveis.”

Esta jornalista enfatizou que a VOA frequentemente operava em países e regiões onde governos autoritários controlam a imprensa ou onde a imprensa independente foi dizimada, o que significa que a VOA, de forma constante, fornece um contrapeso crítico para narrativas enganosas. Além disso, eles repetidamente cobrem histórias sobre corrupção e violações de direitos humanos.

A ausência de reportagens da VOA feitas a partir dessas regiões é crítica para o interesse [dos governos autoritários]. É por isso que eles estão comemorando, especialmente na África, o que significa menos exposição a seus abusos de direitos humanos, à corrupção, às práticas autoritárias”, disse ela.

Eliud Akwei é um analista de dados investigativos no iLAB, a equipe de dados forenses da organização sem fins lucrativos de tecnologia e jornalismo de dados Code for Africa. Akwei, que cobriu amplamente a desinformação, disse que a VOA prestou um serviço inestimável ao fornecer cobertura independente e verificada sobre questões como a eleição nigeriana de 2023 ou a Guerra do Tigre na Etiópia, quando políticos disseminaram desinformação por meio de declarações oficiais e em plataformas de mídia social.

Em muitos países africanos, os meios de comunicação controlados pelo governo ou patrocinados pelo Estado já são as fontes dominantes de informação. Sem a cobertura independente da VOA, esses canais de imprensa poderiam fortalecer ainda mais seu domínio sobre a narrativa, promovendo mensagens aprovadas pelo governo e suprimindo vozes dissidentes”, disse Akwei. “Países como Rússia, China e até mesmo atores regionais com suas próprias agendas podem aproveitar a oportunidade para aumentar sua influência na África.”

OS ATORES QUE PROCURAM PREENCHER O VAZIO

Por décadas, tanto a Rússia quanto a China têm se infiltrado no ecossistema de notícias na África tanto por meio de métodos secretos e quanto visíveis. Um mês antes do desmantelamento da VOA, a Sputnik, uma das agências de notícias estatais da Rússia, abriu seu 1º centro editorial na Etiópia. Dmitry Kiselev, chefe da empresa de mídia que administra a Sputnik, disse na cerimônia de inauguração que eles estão planejando abrir centros na África do Sul e na Tanzânia para publicar conteúdo em 2 idiomas: suaíli e hausa.

A RT, braço de radiodifusão estatal da Rússia, abriu escritórios na Argélia e também está de olho em novos postos na África do Sul e no Quênia. Seu mais recente empreendimento no continente foi na forma da RT Academy. Lançada no ano passado, a RT Academy é “um projeto educacional internacional” que busca treinar jornalistas e repórteres do continente em um esforço para expandir ainda mais suas operações na África. De acordo com uma investigação aprofundada da BBC, as aulas são repletas de propaganda do Kremlin, desinformação e peças desacreditando a “imprensa ocidental”.

Tanto a RT quanto a Sputnik têm expandido ativamente sua presença na região desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, o que levou muitos países, incluindo a UE (União Europeia), a bloquear seus canais de notícias. Desde então, a RT assinou contratos com mais de 30 emissoras de TV africanas que agora transmitem seu conteúdo, a Sputnik lançou a Sputnik África, e tanto a RT quanto a Sputnik aumentaram o número de correspondentes que têm em toda a região.

A China também invadiu o sistema de informação africano. A Xinhua e a CGTN, as agências estatais oficiais de notícias, têm mais de 37 escritórios na África. Semelhante à Rússia, elas também fizeram parcerias com veículos locais para estender o alcance de seu conteúdo, além de estabelecer iniciativas de treinamento de jornalistas. A operadora de televisão digital chinesa Startimes está disponível em pelo menos 30 países africanos, expondo milhões de africanos ao conteúdo chinês.

O objetivo da Rússia e da China é viabilizar narrativas que promovam seus próprios países, mas eles estão fazendo isso de maneiras diferentes, disse Samba Dialimpa Badji, pesquisador do Projeto Decodificação de Mídia Digital em Regiões Africanas de Conflito, o DDMAC, e candidato a doutorado na Universidade OsloMet, na Noruega.

Para a Rússia, trata-se realmente de uma narrativa anti-Ocidente, em que dizem que todos os seus problemas vêm do Ocidente ou da França [no caso da África francófona]. A China, por outro lado, diz mais ‘Nós somos seus amigos’. É mais sobre apresentar a cultura chinesa, o modo de vida chinês e o que a China pode oferecer à África”, disse Badji, que também é um jornalista senegalês com mais de 20 anos de experiência e ex-editor-chefe do escritório francófono da Africa Check.

Akwei, da Code for Africa, disse que uma das principais narrativas que eles vêm acompanhando é a ideia de que o Ocidente é imoral e busca impor aos países africanos comportamentos que são incompatíveis com os valores culturais de seu povo. Por exemplo, o apoio à comunidade LGBTQIA+ é frequentemente usado como exemplo dessa “imoralidade”.

Outro ponto-chave da narrativa é a lembrança da história de colonialismo na África e do neocolonialismo que ainda existe hoje”, disse ele. “Esses atores destacam que seus países nunca colonizaram a África, ao mesmo tempo em que enfatizam que o Ocidente ainda controla os governos africanos.

Quando conversei com Steven Gruzd, chefe do programa de Governança e Diplomacia Africana no SAIIA (sigla para Instituto Sul-Africano de Assuntos Internacionais), ele destacou que, além de utilizar a imprensa tradicional, o Kremlin também tem uma forte presença nas plataformas digitais.

As redes sociais se tornam um local de reempacotamento onde as notícias são disseminadas e espalhadas”, disse ele. “Elas entram nas fissuras locais, nas queixas locais, e tendem a amplificar isso. Também tivemos o fenômeno bem conhecido das fazendas de trolls, onde a Rússia emprega pessoas para espalhar mensagens e criar perfis nas redes sociais.

A jornalista da VOA com quem conversei apontou que a desinformação vinda da Rússia assume formas por meios mais encobertos. “Vimos deepfakes sendo usados como pessoas legítimas e reportando em países francófonos, e também vimos repórteres fantasmas escrevendo para a propaganda pró-russa na África Ocidental”, disse ela.

O Kremlin também fez parcerias com meios de comunicação locais para ganhar legitimidade e mais espaço na região. Eles também utilizam redes de plataformas sociais coordenadas para lançar campanhas de desinformação por todo o continente.

Embora a Rússia seja o ator mais visível nesse espaço, todos os jornalistas com quem conversei apontaram que a China também é um jogador crescente nesse cenário.

Se a China está investindo em um país, ela simplesmente se alinha com quem tem o controle; geralmente, nesses países africanos, isso seria principalmente os governos”, disse a jornalista da VOA. “[Por exemplo], se eles compram terras e deslocam uma determinada comunidade, e há questões ambientais relacionadas ao investimento no qual provavelmente estarão colocando muito dinheiro, eles não querem que esse lado da história seja contado. Eles vão te contar uma história sobre como transformaram a vida da comunidade.

Em 2018, o jornalista Azad Essa escreveu sobre sua experiência ao discutir a perseguição de mais de um milhão de muçulmanos uigures na província de Xinjiang, na China, em uma coluna semanal que ele escrevia para um jornal sul-africano. Empresas ligadas ao Estado chinês detinham 20% das ações do jornal. Uma semana depois de escrever o artigo, que não foi publicado, o jornal cancelou sua coluna.

Eles estão vendo isso como uma forma de exercer seu soft power, mas com a ressalva de que não estão exportando liberdade de imprensa. Eles estão exportando o que fazem em seus próprios países, ou seja, reprimindo a dissidência e reprimindo jornalistas”, disse a jornalista da VOA.

Badji apontou que há um ator negligenciado que também está tentando se infiltrar no ecossistema de informações na África: a Turquia.

“[A Turquia] tem um interesse econômico, pois investiu muito em vários países africanos, e agora também tem um interesse militar”, disse ele.

No mês passado, a Corporação Estatal de Rádio e Televisão da Turquia, a TRT, lançou a TRT Somali, sua mais recente adição às suas empreitadas de mídia na África. Após lançar a TRT Afrika em 2023, o grupo passou a operar em vários países do continente, incluindo Gâmbia, Marrocos, Nigéria e Camarões.

ALÉM DA PERDA DA VOA

Atualmente, o futuro da VOA parece, no mínimo, incerto. No momento, todos os 1.300 funcionários da VOA foram colocados em licença. No entanto, no fim de março, um juiz federal ordenou que o governo pausasse temporariamente suas iniciativas para fechar a VOA, impedindo a gestão federal de demitir seus funcionários. A decisão não exigiu que a rede retomasse as transmissões. Embora alguns funcionários da VOA tenham entrado com uma ação judicial contra a administração Trump por ter fechado a USAGM e, assim, desmantelado todas as suas redes, não está claro quando eles poderiam voltar a transmitir –se isso acontecer de fato.

A falta de reportagens independentes diminui a capacidade de se envolver efetivamente com o público, fazer mudanças nas políticas ou até mesmo o engajamento político, tanto para os formuladores de políticas aqui quanto em outros lugares”, disse a jornalista da VOA com quem conversei. “Também haverá um retrocesso jornalístico para a imprensa africana, porque a VOA treinou tantos jornalistas locais.

Gruzd, do SAIIA, afirma que a saída da VOA certamente não impedirá a Rússia de continuar investindo no continente africano, especialmente à medida que as sanções ocidentais continuam a ser impostas. Ele descreve como a Rússia historicamente aumentou sua presença no Sul Global depois de ser isolada. Vimos isso durante a invasão da Geórgia em 2008, durante a invasão da Crimeia em 2014 e durante a atual invasão em grande escala da Ucrânia a partir de 2022.

A Rússia dá muita importância a qualquer relação exterior que consiga estabelecer”, disse Gruzd. “Então, quando ela sedia reuniões ou quando [o Ministro das Relações Exteriores da Rússia] Lavrov viaja para diversos encontros, isso vira uma grande notícia para a Rússia dizer: ‘Vejam, não estamos isolados.’ A Rússia está nesse jogo de influência há pelo menos 100 anos, e não vai parar agora.

Akwei afirmou que as narrativas espalhadas por esses atores já tiveram sucesso, pois alimentam o descontentamento contra governos que são vistos como fantoches do Ocidente, especialmente da França.

Essas narrativas contribuíram para os sentimentos que levaram aos golpes de Estado em Burkina Faso, Mali e Níger”, disse ele. “A saída em massa de tropas ocidentais e de manutenção da paz da ONU [Organização das Nações Unidas] de países como Burkina Faso, Chade, Mali, Níger e Senegal ocorreu após campanhas coordenadas que exigiam sua retirada.

Akwei disse que a checagem de fatos e a pesquisa forense são ferramentas essenciais e devem ser usadas para combater o que ele chama de “manipulação da informação”. Os jornalistas devem combinar a desinformação desmentida com a investigação sobre a origem dessas campanhas e, em seguida, analisar quem é o público-alvo para conseguir interromper os fluxos financeiros ilícitos que as financiam.

Primeiro, precisamos reformular qual é realmente o problema. Embora a desinformação e a má informação ainda existam, temos notado a exploração de narrativas como o neocolonialismo –que não são necessariamente falsas– para manipular os sentimentos públicos. É por isso que a formulação do problema como manipulação e interferência da informação é importante”, disse ele.

O ecossistema midiático africano já está cambaleando diante de várias mudanças causadas pela administração Trump, incluindo os cortes da USAID, que financiavam muitas organizações de notícias independentes, e a provável retirada da Meta do financiamento de checadores de fatos independentes ao redor do mundo.

Outros grupos de mídia internacionais também têm recuado da África. O BBC World Service cortou aproximadamente 50 dos 130 postos de trabalho em seu Serviço Africano em 2022, como parte de uma mudança do rádio e da televisão tradicional para a distribuição digital. No início deste ano, eles anunciaram que cortariam 130 empregos em nível global como parte de um plano para economizar cerca de £ 6 milhões no próximo ano fiscal. No mês passado, mais de 50 ex-jornalistas seniores do BBC World Service alertaram o governo britânico que China e Rússia ocuparão qualquer lacuna deixada pela emissora, diante de possíveis cortes em seu financiamento, segundo o jornal The Times.

É muito triste ver esses cortes, especialmente no rádio, já que é um meio de comunicação tão importante no continente”, disse Gruzd. “Não sei se jogar mais dinheiro no problema vai resolver a onda de desinformação, mas também não sei o que mais pode ser feito, se não for investir na capacitação das redações e no fortalecimento do jornalismo.

Para Badji, no entanto, a solução não está em os públicos africanos dependerem de veículos de imprensa internacionais, sejam eles ocidentais ou não, mas, sim, em ter um grupo de mídia pan-africano, inspirado nesses modelos, que seja capaz de oferecer uma perspectiva africana.

Mesmo para ter informações confiáveis sobre o que está acontecendo na África, somos obrigados a ver o que a ‘Al Jazeera’ está dizendo, o que a ‘RFE’ [Radio Free Europe] está dizendo, o que a ‘BBC’ está dizendo, e acho que isso é um grande problema”, disse ele. “Pode parecer um clichê, mas é realmente importante ter uma narrativa africana sobre o que está acontecendo no mundo –como os africanos estão enxergando os acontecimentos, como os africanos estão reportando os fatos– mas nós não temos isso.


* Gretel Kahn é uma jornalista panamenha que escreve para o Reuters Institute for the Study of Journalism, onde esta reportagem foi publicada originalmente.


Texto traduzido por Marina Ferraz. Leia o original em inglês.


O Poder360 tem uma parceria com duas divisões da Fundação Nieman, de Harvard: o Nieman Journalism Lab e o Nieman Reports. O acordo consiste em traduzir para português os textos do Nieman Journalism Lab e do Nieman Reports e publicar esse material no Poder360. Para ter acesso a todas as traduções já publicadas, clique aqui.





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