O tempo é rei, e Gilberto Gil é eterno

O tempo é rei, e Gilberto Gil é eterno


Maior lenda viva da nossa cultura se despede dos palcos celebrando a imortalidade de sua obra

Há artistas que passam. Outros que permanecem. E há aqueles que se tornam elementos vitais da cultura, como um vento que sopra sempre novo, como um rio que nunca cessa de correr. Gilberto Gil é essa força da natureza. Ele não apenas atravessou seis décadas de música, como moldou os caminhos por onde ela seguiu.

Não apenas acompanhou o tempo, mas dançou com ele, regeu suas batidas e fez da passagem dos anos uma partitura que nunca desafina. Agora, ao anunciar sua despedida dos palcos, nos deixa um legado que é, ao mesmo tempo, uma escola e um mistério: como pode um único homem ter sido tantas revoluções ao mesmo tempo?

Legado das cordas

Se existe um segredo guardado nas cordas do violão, Gil o decifrou com sua mão direita precisa e mágica. O ritmo que ele extrai do instrumento é um Brasil inteiro comprimido em seis cordas: baião, samba, ijexá, bossa, frevo, reggae, rock. Seu violão não toca notas, ele conjura elementos, evoca o tempo, invoca a memória da música popular.

Gil é a síntese rítmica de um país vasto e múltiplo, com harmonias exuberantes e um toque inconfundível que ensinou gerações inteiras a pensar musicalmente. Cada arranjo seu é uma aula de produção, uma exibição de inteligência criativa, uma demonstração de como tradição e inovação podem ser irmãs inseparáveis.

Está escrito, procure saber

Mas Gil não é apenas um mestre dos sons. É também um mago das palavras. Sua poesia é uma alquimia única entre erudição e simplicidade, entre o coloquial e o metafísico.

Poucos escritores dominam nossa língua com tanta elegância e fluidez, brincando com trocadilhos que não são meras acrobacias verbais, mas ferramentas filosóficas que nos fazem mergulhar fundo em sua alma exuberante.

Ele não escreve apenas canções: escreve ideias, escreve o Brasil. Suas letras transitam entre o amor e a política, entre o misticismo e a ciência, entre o íntimo e o universal, com uma destreza que poucos poetas alcançaram.

Um presente ao presente

Se há um traço que faz de Gil uma entidade única, é sua conexão permanente com o presente. Nunca um saudosista, sempre um visionário. Em cada época, ele esteve atento, contemporâneo, ligado ao que pulsava de mais vivo.

Quando a ditadura sufocava a liberdade, ele foi exilado, mas sua música continuou falando pela democracia. Quando a cultura digital tomou conta, ele se tornou um dos primeiros artistas a compreender a nova lógica da internet.

Quando muitos torcem o nariz para a nova geração da música, Gil abre os braços e constrói pontes. Não tem medo do novo, porque sabe que a música é sempre um fluxo contínuo de transformação. Prova disso são suas recentes colaborações.

Quando uniu sua voz ao piseiro de João Gomes, ele não apenas celebrou um gênero popular emergente, mas mostrou que a música de raiz continua viva, mutante e vibrante. Quando contribuiu com MC Hariel na emocionante “A Dança”, elevou o funk a um novo patamar de aceitação, ajudando a quebrar barreiras e reforçando a importância dessa expressão artística periférica.

Enquanto tantos escolhem o preconceito ou a indiferença, Gil escolhe a criação, o diálogo e o futuro.

Obrigado, mestre

O palco pode até sentir sua falta, mas Gilberto Gil não se despede da vida, nem da música, nem do Brasil. Porque sua obra não é um monumento estático, é um rio caudaloso que continuará a correr por séculos, alimentando gerações de músicos, poetas e sonhadores.

Seu violão ainda tocará em cada um que aprendeu a ouvir sua batida única. Sua poesia ainda ecoará em cada brasileiro que compreende a força de uma palavra bem dita. Seu espírito ainda estará presente sempre que alguém, diante da passagem inexorável do tempo, souber dizer com serenidade e grandeza: “A vida é uma festa”.



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