A CBF e o dever de esclarecimento: Ministério Público, agora só falta você

A CBF e o dever de esclarecimento: Ministério Público, agora só falta você


Sucessão de denúncias envolvendo a entidade, muitas delas de conhecimento público há anos, tem sido acompanhada por uma preocupante ausência de resposta institucional

Rafael Ribeiro/CBFEdnaldo Rodrigues
Ednaldo Rodrigues foi reeleito presidente da CBF em março

A reportagem publicada na última sexta-feira (4) pela Revista Piauí, assinada pelo jornalista Allan de Abreu, escancara com gravidade o que por muito tempo foi tratado como ruído de bastidor: a existência de uma estrutura profundamente opaca e possivelmente comprometida no coração do futebol brasileiro. Os fatos narrados não apenas reforçam antigas suspeitas sobre a gestão da CBF, como também revelam, em detalhes estarrecedores, a normalização de práticas que parecem incompatíveis com qualquer padrão mínimo de governança, integridade e interesse público.

Não se trata de um episódio isolado ou de uma má gestão pontual. O que se evidencia é um modelo que parece ter adotado a repetição como método, a blindagem como escudo e a ausência de fiscalização como oportunidade. Gastos milionários com festas privadas, presentes utilizados como moeda política, voos bancados com dinheiro da entidade para fins pessoais, supersalários pagos com recursos da confederação e um ambiente de poder fechado à renovação. Tudo isso diante da omissão de órgãos que deveriam agir.

A indignação cresce porque o futebol brasileiro não pertence a uma entidade. Ele é um patrimônio cultural, econômico e simbólico da sociedade brasileira. E não pode continuar submetido a um sistema que se perpetua longe dos olhos da transparência e à margem dos controles institucionais.

As suspeitas ganham ainda mais força diante de episódios recentes que chamaram a atenção do meio esportivo. Um deles foi a majoração dos salários pagos aos presidentes das federações estaduais, que saltaram de R$ 50 mil para R$ 215 mil mensais — valor custeado diretamente pela CBF. E como se o montante já não fosse suficiente para gerar perplexidade, os dirigentes ainda teriam direito a um “bônus” institucionalizado: o pagamento de até 16 salários por ano. A revelação causou indignação nos bastidores e reforça a percepção de que a estrutura da CBF premia a fidelidade com benefícios desproporcionais, pouco compatíveis com a realidade do esporte nacional.

Em paralelo, causou forte estranheza a declaração pública de Ronaldo Fenômeno, ex-jogador e empresário do futebol, que relatou ter encontrado portas fechadas ao tentar apresentar seu projeto como pré-candidato à presidência da entidade. Segundo ele, das 27 federações filiadas, 23 sequer aceitaram recebê-lo para uma conversa.

Esse cenário revela algo muito mais profundo que divergências administrativas. Levanta dúvidas legítimas sobre a existência de um ambiente fechado à alternância de poder, impermeável a propostas de renovação e comprometido com a perpetuação de um mesmo grupo dirigente. Tudo isso em uma entidade que, embora privada, administra interesses públicos inegáveis e recursos vultosos que se originam da paixão de milhões de brasileiros.

O torcedor como consumidor estruturalmente lesado

Num país em que o futebol é parte da alma coletiva, o torcedor não pode mais ser tratado como figura decorativa. Ele é consumidor, como reconhece o Código de Defesa do Consumidor. É sujeito de direitos, como estabelece o Estatuto do Torcedor. E é cidadão, cuja confiança está sendo sistematicamente desprezada por uma estrutura que aparenta funcionar à revelia do interesse público.

Cada suspeita de favorecimento, desvio de finalidade ou uso obscuro dos recursos da CBF repercute diretamente na experiência de quem sustenta o espetáculo. Quando a lisura das competições é posta em dúvida, quando os bastidores ganham protagonismo sobre o mérito esportivo, o que se compromete é a integridade de todo o sistema. O torcedor é lesado em sua expectativa legítima de transparência, equidade e respeito.

Não se trata de mera crise de imagem. Trata-se de uma possível violação massiva de direitos coletivos, com impactos econômicos, emocionais e institucionais. O futebol, enquanto produto de consumo de alcance nacional, está sendo entregue sem garantia mínima de integridade. E isso exige ação firme do Ministério Público e o engajamento ativo dos órgãos de defesa do consumidor. O torcedor merece mais do que indignação passageira. Ele tem direito à reparação. E ao respeito.

O silêncio institucional e a necessidade de reação das autoridades e da mídia

A sucessão de denúncias envolvendo a CBF, muitas delas de conhecimento público há anos, tem sido acompanhada por uma preocupante ausência de resposta institucional. A normalização do desvio, sustentada pelo silêncio das autoridades e pela inércia dos mecanismos de controle, contribui para a manutenção de um modelo que se perpetua em meio à opacidade e à ausência de responsabilização efetiva.

Neste cenário, o Ministério Público precisa assumir de forma plena o papel que a Constituição lhe atribui. A defesa da moralidade administrativa, dos interesses difusos e da ordem jurídica exige atuação proativa, articulada e tecnicamente embasada. A quantidade e gravidade dos indícios revelados, somados ao histórico recente da entidade, tornam incompatível qualquer postura passiva ou limitada à esfera administrativa.

A continuidade desse silêncio reforça a percepção de que, no futebol, há um regime de exceção institucional onde estruturas privadas com forte impacto público operam sem fiscalização adequada. O risco que se impõe não é apenas esportivo, mas também jurídico, econômico e social.

Também é urgente que a imprensa esportiva tradicional cumpra seu dever informativo com independência. O jornalismo investigativo já fez sua parte ao tornar públicos os fatos e suspeitas. Agora, é preciso que os grandes veículos, colunistas e comunicadores rompam com a superficialidade do noticiário e tratem o tema com a seriedade que ele exige. Reduzir essas denúncias à condição de notas de rodapé apenas contribui para a perpetuação de um modelo que desafia os princípios mais básicos de governança.

O torcedor merece mais do que um espetáculo dentro de campo

Quando se fala em CBF, o que está em jogo não é apenas a lisura de seus dirigentes, mas a integridade de todo um sistema que movimenta bilhões, forma atletas e alimenta o imaginário de gerações. O que se espera das autoridades e da imprensa é vigilância. O que se espera das instituições é firmeza e presença.

O tempo do silêncio precisa dar lugar à apuração, à transparência e à responsabilização. Porque quando os indícios se acumulam e ninguém age, o que era suspeita se transforma em descrença. E o futebol brasileiro não pode continuar jogando sob esse risco.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.





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