O Partido Democrata atravessa uma de suas maiores crises de identidade. Com uma liderança envelhecida e índices históricos de rejeição, a legenda encontra-se rachada entre o passado pragmático-centrista-conciliador e um futuro mais jovem-progressista-combativo. Nesse vácuo de liderança e rumo, figuras como Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez emergem não apenas como símbolos de resistência, mas como possíveis catalisadores de uma profunda renovação partidária.
A recente votação do orçamento federal proposto pela Casa Branca sob Donald Trump expôs o dilema estratégico que acentua não apenas a fragilidade institucional do partido, mas a profundidade da crise de representação que o assola. Diante da aprovação de um orçamento autoritário e concentrador de poder ou da possibilidade de provocar um shutdown com consequências devastadoras para os serviços públicos os democratas optaram, majoritariamente, por capitular. O texto orçamentário aprovado inclui cláusulas com forte potencial de erosão democrática: ampliação significativa dos gastos com defesa, cortes profundos em programas sociais, restrição de fundos para agências reguladoras e, sobretudo, um dispositivo que permite ao Executivo redirecionar recursos sem autorização adicional do Congresso.
Senador dos Estados Unidos, Bernie SandersLalo de Almeida/Folhapress
Recusar esse orçamento significaria, contudo, aceitar o risco de uma paralisação total da máquina pública. Um shutdown de grandes proporções implicaria na suspensão dos salários de milhões de servidores federais, restando apenas os serviços essenciais cuja definição estaria nas mãos do próprio governo Trump. Em outras palavras, a recusa poderia ter desencadeado uma crise ainda mais grave: o uso político do shutdown como ferramenta para acelerar o desmonte institucional do Estado de bem-estar social.
A aprovação do orçamento, sem consenso interno, acirrou as fissuras ideológicas e geracionais dentro do Partido Democrata. Parlamentares como Alexandria Ocasio-Cortez, Jamaal Bowman e o próprio Bernie Sanders denunciaram a decisão como um ato de submissão a uma agenda autoritária travestida de normalidade institucional. Para esse campo, o orçamento representava uma linha vermelha: sua rejeição teria sido um instrumento legítimo de resistência.
Segundo pesquisa CNN/SSRS realizada após a controversa votação orçamentária, na qual senadores democratas, incluindo Chuck Schumer (líder da minoria democrata no Senado) votaram com os republicanos, e o orçamento proposto pela Casa Branca aprovado na íntegra, a aprovação do Partido Democrata caiu para 29%, o pior índice desde 1992. Entre democratas e independentes simpáticos ao partido, 52% acreditam que a legenda está indo na direção errada, enquanto 57% defendem o enfrentamento direto da agenda republicana.
Nesse cenário de crise, o partido assiste a uma movimentação errática de suas figuras de proa. Gavin Newsom, governador da Califórnia, antes celebrado como liderança progressista emergente, passou a flertar abertamente com a direita cultural. Seu novo podcast, que contou com a presença de figuras como Steve Bannon, é interpretado por setores da esquerda como uma tentativa perigosa de naturalizar discursos extremistas sob o pretexto de diálogo democrático. A crítica aqui não é apenas estética: toca no risco real da normalização do trumpismo como parte legítima do espectro político o que equivale a renunciar a qualquer linha de contenção simbólica.
Tim Walz, ex-governador de Minnesota e antigo aliado de Kamala Harris, também iniciou uma turnê nacional em busca de reposicionamento dentro do partido. Seu discurso, no entanto, não tem provocado entusiasmo significativo nem entre moderados nem entre progressistas.
O Partido Democrata encontra-se, portanto, num ponto de inflexão histórica. Entre o pragmatismo que beira a conivência e parece esperar que o governo Trump se imploda sozinho e a necessidade de reinvenção significativa. A votação do orçamento foi um sintoma deste momento. Líderes como Chuck Schumer e Nancy Pelosi são cada vez mais vistos como representantes de uma elite política desconectada das urgências sociais e digitais do presente.
A divisão etária e ideológica é explícita (Pesquisa CNN/SSRS 6 a 9 março 2025):
- Entre jovens com menos de 45 anos, AOC lidera como representante dos valores democratas;
- Kamala Harris, Bernie Sanders e Hakeem Jeffries aparecem atrás, em percentuais modestos;
- E mais de 30% dos entrevistados não citaram nenhum nome um vácuo que revela mais do que confusão: evidencia o colapso simbólico da representatividade no partido.
Nesse vácuo de liderança, AOC emerge como a figura mais promissora do novo campo progressista. Com apenas 35 anos, sua projeção nacional já ultrapassa os limites de seu mandato parlamentar. AOC articula não apenas uma retórica insurgente contra a oligarquia econômica tema central de Bernie Sanders como também mobiliza amplamente juventudes urbanas, latinos e setores sindicalizados que se sentem órfãos de representação. Junto com Sanders, lidera a campanha Lute contra a Oligarquia, que percorre estados-chave mobilizando contra os cortes no Medicaid, a privatização de serviços públicos e a concentração de poder executivo. Sua figura já é mencionada como possível líder do partido no Senado ou mesmo candidata à presidência em 2028. Sua ascensão, no entanto, desafia a estrutura partidária: uma eventual candidatura de Ocasio-Cortez exigiria que o establishment democrata aceitasse não apenas uma nova linguagem, mas um novo paradigma político: ancorado em confronto, mobilização popular e enfrentamento direto à plutocracia.
A turnê nacional Lute contra a Oligarquia, protagonizada por Bernie e AOC, revelou o apetite popular por uma agenda progressista com viés combativo. Seus comícios têm atraído multidões em estados decisivos e distritos republicanos, ancorados em críticas à captura do Estado por bilionários como Elon Musk e em propostas concretas, como a defesa da seguridade social e dos serviços públicos. Sanders denuncia o que chama de governo da classe bilionária, para a classe bilionária, pela classe bilionária. Sua crítica ultrapassa a conjuntura de governo autocrático de Trump 2.0. O Partido Democrata não tem base popular é um mantra que Sanders repete desde a campanha Biden-Harris/ Harris-Biden. Sua leitura é de que o colapso atual da legenda também decorre da omissão histórica frente às demandas da classe trabalhadora
O impasse estratégico se reflete na hesitação da legenda em assumir uma nova liderança. O dado de que mais de 30% dos entrevistados numa pesquisa nacional recente não conseguiram citar sequer um nome que represente o partido é sintomático. Neste cenário, o futuro da oposição a Trump pode depender da capacidade de Sanders e AOC transformarem seu carisma e base digital em um movimento de massa energizado na resistência ao autoritarismo. Bernie, aos 83 anos, praticamente descarta nova candidatura presidencial. O partido democrata lhes dará mais espaço?
Resta saber se os democratas seguirão divididos e imóveis diante da rápida escalada autoritária de Trump, ou se ousarão se reinventar a partir de suas margens.
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