Congresso em Foco

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A guerra da Rússia na Ucrânia expôs um dos maiores acontecimentos internacionais das últimas décadas: o casamento entre Trump e Putin. Existem três grandes razões para esse matrimônio afetivo. Duas razões pertencem ao mundo da política. Outra, ao campo da geopolítica.

A relação entre os dois líderes reflete uma convergência ideológica e geopolítica que desafia a ordem liberal democrática e fortalece uma lógica imperialista no cenário internacional.

A relação entre os dois líderes reflete uma convergência ideológica e geopolítica que desafia a ordem liberal democrática e fortalece uma lógica imperialista no cenário internacional.Sergei Guneev/Sputnik

A primeira grande razão é a afinidade ideológica na forma como o exercício de poder é encarado por Trump e Putin. O Iluminismo fundador do Ocidente, como o entendemos hoje, sempre defendeu que a história marcharia de forma inexorável rumo ao progresso.

Putin e Trump, ao contrário, olham para o passado como inspiração. O comunismo de Marx e Lenin e a visão neoliberal prevalecente nos anos 80 e 90, ambos filhos da visão histórica do iluminismo, são anátemas para Putin, que atribuiu a eles todas as calamidades da Rússia no século XX.

No caso do período soviético, o objeto de ódio de Putin é Lenin, e não Stálin ou qualquer outro líder do período. Para Putin, Lenin cometeu dois pecados: 1) importou o comunismo do exterior e 2) tinha uma visão muito mais liberal sobre as diferentes partes do Império Russo.

Em relação aos anos 90 do século passado, o neoliberalismo é obviamente o grande culpado. Marxismo e Neoliberalismo compartilham também do mesmo pecado. A visão de que resolvendo de forma eficiente a economia se arruma a política. Essa dinâmica, como todos sabemos, falhou drasticamente nos anos 90 na Rússia – e em certa medida no próprio Ocidente – e foi determinante na ascensão de Vladimir Putin.

O resultado da chegada de Putin ao Kremlin estabeleceu uma nova lógica de consolidação de poder: a lógica da subordinação total da economia ao controle político. Vale sempre lembrar o destino dos bilionários que escolheram Putin para substituir Boris Yeltsin: todos os que não se submeteram à realidade do novo Czar, sem exceção, ou foram mortos ou excomungados do país.

A lógica “Putiniana”, que determina que o sucesso de qualquer negócio depende da proximidade e das vontades do Czar, é o que explica a nova e caótica – política tarifária de Trump. E, claro, ajuda a entender a proximidade dos bilionários da tecnologia com a Casa Branca (uns somente por dinheiro e outros, como Musk e Thiel, motivados também por uma agenda ideológica).

Putin e Trump comungam de vários valores. Um que vale ser destacado é que para os dois o verdadeiro inimigo é o liberalismo democrático. Não à toa, a União Europeia, símbolo maior do liberalismo democrático do pós Segunda Guerra, é o oponente a ser combatido.

É sempre importante lembrar que invasão inicial da Ucrânia em 2014 não ocorre por causa da OTAN, mas, sim, pela iminência da Ucrânia em assinar um acordo econômico com a União Europeia. Na sequência, em 2015, o maior porta-voz do liberalismo democrático russo, Boris Nemtsov, foi barbaramente assassinado nos arredores do Kremlin.

Portanto, hoje a resistência da Ucrânia é a antítese à política de cinismo e da visão pessimista e apocalipse civilizacional que são as marcas da narrativa política de Trump e Putin. Olhar os discursos na Conferência de Munique de Putin em 2007, e de J.D. Vance em 2025, é compreender o mesmo desafio ao liberalismo democrático e à ordem mundial por ele sustentado.

O cálculo do casamento com Putin é para Trump o fim do liberalismo democrático nos EUA. E essa equação será mais facilmente alcançada com o fim do liberalismo democrático da União Europeia. Para Putin, esse é o cenário ideal para ele, enfim, colocar em prática o seu grande sonho: a recriação de um novo Império Russo.

Por último, temos a razão geopolítica do matrimônio entre Putin e Trump. Ela nasce, em parte, da ilusão de que os EUA poderiam fazer com a Rússia o mesmo que fizeram em 1972 com a China: separar os dois países.

Para qualquer observador da cena internacional mais atento, esse movimento não passa de uma grande ilusão. Em 1972, Rússia e China eram adversários e chegaram a entrar em conflito militar em 1968. Hoje a situação é bem distinta. O caminho mais provável passa, pois, por um entendimento das três nações, Rússia, EUA e China, com zonas de influência de cada uma delas determinadas. Leis internacionais? Esqueçam! Voltamos à uma lógica imperialista típica do século XIX onde, não por coincidência, os ídolos políticos de Putin e Trump lideraram seus os respetivos países: Czar Alexandre III e William McKinley, que ficou conhecido pelas políticas protecionistas, a expansão do imperialismo americano e por ser assassinado no cargo de presidente.

Mais que tudo, como a história tende a rimar, Tucídides, há quase 2500 anos, resumiu o que vivemos hoje. É o mundo onde os “fortes fazem o que podem, e os fracos sofrem o que devem”.

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