A democracia global enfrenta uma crise profunda. O Relatório V-Dem 2025 aponta que 72% da população mundial já vive sob regimes autocráticos um índice alarmante, não registrado desde 1978. A desinformação, a polarização e o autoritarismo se entrelaçam em um ciclo destrutivo, acelerando a degradação do tecido democrático-institucional. Os Estados Unidos, outrora um pilar da democracia liberal, agora figuram entre os países que caminham em direção à autocratização, o segundo governo de Donald Trump é a evidência mais contundente desse fenômeno.
Ainda segundo o relatório, a polarização está aumentando em todos os países estudados, muitas vezes a níveis tóxicos. Há uma correlação estatística muito significativa entre autocratização e aumento de desinformação institucional. Ao se aplicar este conceito para o caso norte-americano, a revogação da moderação de conteúdos anunciada pela meta e outras ações das Big Techs próximas a Trump, trazem o cenário estado-unidense para uma situação ainda mais dramática. Outro sintoma da doença moderna das democracias trazido pelo relatório do Vdem, é o fato de que se a polarização política estiver em alta, os cidadãos ficam mais dispostos a trocar os princípios democráticos por outros interesses. A votação do “Brexit” e a eleição presidencial dos EUA são dois exemplos proeminentes em que esse padrão se manifestou.
Diferentemente de seu primeiro mandato, quando ainda operava dentro de certos limites institucionais, Trump agora governa sem disfarces. O novo governo se move rapidamente para desmantelar freios e contrapesos. Em sua campanha eleitoral, prometeu perseguir adversários, censurar a mídia, expandir o poder executivo e utilizar as Forças Armadas para conter manifestações. Desde que reassumiu o cargo, tem cumprido essas promessas de forma implacável. Não houve estelionato eleitoral. Trump está seguindo o Projeto 2025, elaborado pela think thank Heritage Foundation, quase na íntegra.
O ataque ao Estado democrático de Direito começou já no primeiro dia de mandato, com o indulto a centenas de condenados pelo ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021. A mensagem é clara: a violência política não apenas será perdoada, mas recompensada. Paralelamente, o governo promove expurgos sistemáticos na burocracia federal, substituindo servidores de carreira por aliados políticos fiéis, enquanto enfraquece a independência do Judiciário e desmantela agências responsáveis pela fiscalização do Executivo. O expurgo se estende às Forças Armadas, com a substituição de comandantes por militares leais ao presidente um padrão comum em regimes que buscam consolidar o poder absoluto.
A essa altura, já não é mais suficiente descrever Trump e seu movimento como meramente autoritários. O autoritarismo busca concentrar o poder do Estado nas mãos de um líder ou partido, enquanto o fascismo se estrutura sobre cinco pilares fundamentais. Vamos tentar pensar no governo Trump, trazendo uma adaptação de estudiosos do fascismo histórico-clássico e contemporâneo, como Hannah Arendt, Jason Stanley, Umberto Eco e Robert O.Paxton: Primeiro, a rejeição da democracia em favor de um líder carismático que se apresenta como a única voz legítima da nação. Trump não apenas questiona a legitimidade do sistema eleitoral, como propaga abertamente a ideia de que sua permanência no poder é indispensável para a sobrevivência do país – Seu discurso não esconde a intenção de remodelar as instituições à sua imagem, desconsiderando normas democráticas e promovendo perseguições políticas.
O Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), liderado por Elon Musk, exemplifica a nova estrutura de poder. Apesar do nome, não se trata de um órgão público, mas de um grupo privado tentando incessantemente ter acesso a informações sigilosas do governo enquanto desmantela de forma atabalhoada e desastrosa a estrutura estatal. O DOGE já demitiu dezenas de milhares de funcionários federais e desmontou a USAID, maior agência internacional de apoio à democracia no mundo. Trata-se de um Estado paralelo operando dentro do governo oficial, chancelado e reforçado a todo instante publicamente por Trump.
Embora Trump não tenha um modelo econômico de Estado forte como os fascistas clássicos, sua política favorece a elite bilionária das Big Techs. A nova estética fascista americana quase funde interesses e negócios privados e governo.
Segundo. A retórica trumpista mobiliza um ressentimento profundo contra supostas “elites progressistas e globalistas” que estariam conspirando contra os “verdadeiros americanos”. Neste contexto, a mídia “mainstream” mente e é inimiga do povo, narrativa que legitima o assédio a jornalistas e abre espaço para medidas que limitam a liberdade de imprensa. Ao criticar juízes de forma bastante pessoal e até considerar impeachments de juízes ou desobediências às ordens judiciais, Trump desafia o princípio do equilíbrio dos Três Poderes, pilar básico das democracias. Ao revogar greencard de estudante apenas por criticar a política externa americana no conflito Israel e Palestina, sem mostrar provas, Trump atenta contra a primeira emenda da constituição americana, a liberdade de expressão, princípio fundador do país, mas também inaugura uma prática perigosíssima: a criminalização da dissidência política e acadêmica. O fim desta ação é trabalhar uma narrativa única aceita, monolítica: a narrativa do governo.
O terceiro elemento do fascismo é o nacionalismo baseado na superioridade racial e na linhagem histórica, algo evidente no trumpismo. Seu discurso insiste em uma identidade americana essencialmente branca, cristã, heteronormativa e patriarcal, onde minorias raciais, imigrantes e dissidentes políticos são tratados como ameaças internas. Durante a campanha, reforçou a retórica da “contaminação do sangue” que imigrantes fariam na miscigenação com o povo americano. Há uma linha de divisão ainda mais restrita na “branquitude” defendida por Trump, algo como “true American Blood” (verdadeiro sangue americano), esta nova estética fascista trumpista parece misturar o conceito de raça pura superior do fascismo clássico com tons de superioridade financeira-militar Estado-Unidense, o que traz um tom de isolacionismo geográfico a esta branquitude.
Os imigrantes são os “outros” da vez na estética fascista Trumpista, são os bodes expiatórios, os culpados de grande parte dos males que atingem a América. Para atingir-se o ideal idealizado de passado e “Fazer a América grandiosa novamente” deve-se eliminar o “inimigo interno”. A reativação de Guantánamo (criada para abrigar terroristas após o ataque as torres gêmeas) reforça a pulsão segregacionista e a narrativa de que os imigrantes são indivíduos perigosos, indesejados.
O quarto pilar é a exaltação da força bruta e heróis históricos. Durante a campanha, Trump frequentemente incitava seguidores a atacar opositores. Mais do que um líder autoritário, que busca controle total do Estado, ele se apresenta como um “justiceiro” que encoraja seus apoiadores a agirem por conta própria para defender sua visão de nação.
Eu sou seu guerreiro, eu sou a sua justiça, eu sou a sua retribuição. Trump.
A lógica darwinista de sobrevivência dos mais fortes se reflete tanto na política externa agressiva quanto no desprezo por políticas sociais e assistenciais. A estética fascista trumpista exalta a meritocracia em seu estado mais perverso e distorcido. O mérito é atribuído apenas a quem se encaixa na narrativa do “vencedor” geralmente, homens brancos ricos enquanto qualquer política de inclusão é vista como uma ameaça ao sistema.
É também uma estética de revisionismo histórico, onde símbolos da Confederação, que antes representavam a derrota da supremacia branca escravocrata, agora são resgatados e glorificados. Prédios públicos e prisões passam a carregar os nomes de generais confederados, enquanto monumentos de resistência e diversidade cultural são destruídos ou removidos. O mesmo revisionismo atinge a geografia: o Golfo do México e o Monte Kingsley são rebatizados para reforçar a narrativa nacionalista e apagar traços históricos que não se alinhem à nova ordem.
O alinhamento com autocracias e personalidades autocráticos também se intensifica neste governo Trump 2. Sua admiração por regimes oligárquicos e expansionistas revela um fascínio pelo poder absoluto e desprezo pela diplomacia democrática. A política externa de Trump mina alianças históricas da OTAN e reforça laços com líderes autoritários como Putin e Kim Jong-un. O inesperado apreço De Donald pela geopolítica expansionista territorial (Anexação do Canada, Groenlândia e ou/ Canal do Panamá) lembra muito a política imperialista expansionista russa do sex XIX.
Algo como uma “Internacional de Extrema Direita” aos moldes do que foi a CPAC (Conferência da direita conservadora dos Estados Unidos) pode se intensificar e se fortalecer no futuro, sob a liderança de Trump, Musk, Bannon, e reforçado pelo alinhamento com autocratas e líderes da extrema-direita global como Modi, Orbán e Milei.
Por fim, o quinto elemento fascista é o desprezo pelas mulheres e pela população LGBTQ+. O trumpismo propaga uma visão de mundo rigidamente patriarcal, onde a submissão feminina e a repressão de identidades dissidentes são elementos centrais. Desde os primeiros dias do novo governo, foram emitidas ordens executivas que eliminam direitos de pessoas trans, cortam financiamento para programas de igualdade de gênero e ampliam as restrições ao aborto. Nos Estados Unidos hoje, por ordem executiva, só existem oficialmente os sexos “biológicos de nascença: homem ou mulher”.
A nova estética fascista americana tem especial fixação no ataque às identidades dissidentes. Já no início do governo Trump, ordens executivas revogaram proteções para pessoas trans no serviço militar e em espaços públicos. Essa repressão se concretiza em leis e políticas que censuram debates sobre identidade de gênero nas escolas (Dont Say Gay Bill) e utilizam o discurso da “ideologia de gênero” para mobilizar setores conservadores contra os direitos LGBTQ+.
Todos esses elementos já se manifestaram em regimes fascistas do passado, e seu ressurgimento nos Estados Unidos não é um acidente. Se há algo que Hannah Arendt nos ensina, é que regimes totalitários não se consolidam de uma vez, mas por meio de processos graduais de corrosão institucional e normalização do absurdo, ainda segundo sua filosofia, para um regime autoritário se instalar a sociedade precisa estar doente.
O discurso do ódio que permeou a campanha eleitoral de Trump deu lugar, em menos de 60 dias de governo, a uma cultura do medo institucionalizada. O que antes era uma estratégia de mobilização política agora se tornou um instrumento de controle social. O medo de falar o que se pensa se espalha como um vírus, a ameaça de deportação, até mesmo entre cidadãos com greencard silencia, atingindo a imprensa, estudantes, empresas e até mesmo a advocacia setores essenciais para a resistência democrática.
Enquanto as grandes corporações de mídia ainda contam com escritórios de advocacia robustos para se defender, o que acontecerá com os pequenos jornais regionais, já fragilizados economicamente, diante da máquina persecutória de Trump? Processos litigiosos custosos e incessantes fazem parte do modus operandi Trumpista, antes reservado a esfera privada de seus negócios, hoje politizados e usados como arma de intimidação. Movimentos estudantis, historicamente uma força propulsora da resistência democrática, agora enfrentam um ambiente hostil. Empresas abandonam iniciativas de diversidade e inclusão, veículos de mídia ajustam suas narrativas, universidades silenciam debates críticos. A autocensura se torna parte da paisagem.
O medo parece ser um mecanismo central de dominação e controle – paralisa e adormece. O objetivo não é apenas censurar opositores diretos, mas criar um ambiente onde a simples possibilidade de retaliação leve ao auto silenciamento.
O fascismo americano deixou de ser uma ameaça teórica. Ele já está em marcha. Reescreve o passado, controla o presente e dita o futuro tudo isso sem precisar de campos de concentração ou hinos militares.
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