A qualidade dos espaços públicos tem um impacto direto no desenvolvimento saudável de crianças e jovens; lugar de criança é na rua, não confinada em casa ou em áreas restritas, muradas
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Por trás das grades, vejo algumas crianças que observam o movimento da rua enquanto correm para lá a para cá disputando o espaço do estreito quintal com o carro estacionado, as floreiras improvisadas com temperinhos entremeados por espadas de São Jorge e seus dois caramelos, um deles do tipo fiapo de manga. Riem alto de suas brincadeiras.
Passo o semáforo. Bem distante, a cena se repete, desta vez no playground de um condomínio murado. Entremeados por um jardim assinado por um arquiteto paisagista, flores, cascatas, decks e pergolados acolhem crianças acompanhadas por babás cujos olhos não descolam do celular, enquanto aguardam pelo horário da volta ao apartamento. Riem alto de suas brincadeiras. São crianças confinadas.
E na sua cidade, é possível deixar as crianças livres na calçada, caminhando pela rua ou pedalando até a escola ou a sorveteria, como vemos em seriados europeus ou asiáticos? Talvez em cidades pequenas do interior, onde a vizinhança se conhece e as crianças são observadas por todos, essa realidade ainda exista. Mas nas grandes cidades brasileiras, onde 85% da população vive, a qualidade dos espaços públicos – destinados a todos, independentemente de idade, gênero ou condição física, cognitiva e social – resume-se a uma limpeza básica e, eventualmente, a uma manutenção precária.
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Recentemente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 14.826/2024, que institui a parentalidade positiva e o direito ao brincar como estratégias de prevenção à violência contra crianças. A lei reforça o dever do Estado e da sociedade de garantir estruturas adequadas, como equipamentos coletivos para cultura, lazer e esporte, além de promover ações que estimulem o desenvolvimento neurológico e cognitivo das crianças enfatizando que a supervisão desse processo visa à autonomia infantil e a educação não violenta e lúdica, assegurando o direito ao brincar como parte essencial do crescimento saudável. Por fim, as cidades também educam e cabe aos gestores públicos dos três entes federativos assumir esse papel. Décadas depois, o direito de brincar reconhecido em vários países, acontece aqui também. Antes tarde do que nunca, dizem.
A regulação urbana e as normas que orientam a abertura de loteamentos e a regularização do solo, sejam em bairros de surgimento espontâneo ou planejados, deixam nas mãos do proprietário da gleba e do profissional contratado por ele decisões que dão a funcionalidade e a forma do lugar onde você vive. São eles que definem a inclinação das ruas, a largura das calçadas, a localização de praças, parques e jardins – ou a ausência deles.
Em outras palavras, a identidade do lugar, seu caráter e sua funcionalidade dependem do gosto e do interesse de quem loteou o terreno. Nas grandes cidades, onde o adensamento urbano já consolidou erros difíceis de corrigir, o resultado é evidente: espaços públicos inadequados, inseguros e, muitas vezes, inexistentes. A qualidade dos espaços públicos e seu impacto no desenvolvimento saudável de crianças e jovens não apenas limita o direito ao brincar, mas também compromete o desenvolvimento social, motor, cognitivo e emocional das novas gerações.
A qualidade dos espaços públicos tem um impacto direto no desenvolvimento saudável de crianças e jovens. Imagine uma criança que vai a pé para a escola. Em uma cidade bem planejada, ela caminharia por calçadas largas e arborizadas, cruzaria semáforos com tempo adequado para seu ritmo, passaria por praças seguras e bem cuidadas, e encontraria colegas para conversar e brincar no caminho. Essa simples rotina contribuiria para seu desenvolvimento motor, ao estimular a coordenação e o equilíbrio e para seu bem-estar emocional, ao proporcionar momentos de interação e descontração. Mas, ao olhar ao redor, quantos de nós encontramos essa realidade?
Jovens que usam bicicletas como meio de transporte enfrentam desafios semelhantes. Em cidades como Amsterdã ou Copenhague, ciclovias seguras e bem sinalizadas incentivam o uso da bicicleta, promovendo a saúde física e a autonomia dos jovens. No Brasil, porém, a falta de infraestrutura adequada e a cultura centrada no automóvel transformam o ato de pedalar em um risco que pode levar a um sinistro de trânsito. Quantos jovens deixam de usar a bicicleta não por falta de vontade, mas por medo de acidentes ou da ausência de locais seguros para estacioná-las?
Em bairros periféricos, onde os espaços públicos são escassos ou degradados, muitas vezes o único local disponível para brincar é a rua. Crianças correm entre carros estacionados ou em terrenos baldios, expostas a riscos como lixo, violência e acidentes. Já em bairros mais privilegiados, parques e praças bem cuidados oferecem um ambiente seguro e estimulante, onde as crianças podem explorar, interagir e se desenvolver plenamente. Essa desigualdade no acesso a espaços públicos de qualidade reflete e reforça as disparidades sociais existentes.
A importância dos espaços públicos vai além do lazer. Eles são ambientes essenciais para o desenvolvimento cognitivo e emocional das crianças e jovens. Brincar em um parque, por exemplo, não é apenas uma forma de gastar energia; é uma oportunidade de aprender a resolver conflitos, cooperar com os outros e expressar emoções. Jovens que frequentam praças e centros comunitários têm a chance de construir amizades, desenvolver habilidades sociais e fortalecer seu senso de pertencimento à comunidade.
No entanto, a realidade de muitas cidades brasileiras é marcada pela falta de investimento em espaços públicos de qualidade ou até mesmo de zeladoria. Basta ver que os parques são abandonados, praças são tomadas por comércio informal ou transformadas em estacionamentos, e áreas verdes são substituídas para ampliação de sistema viário. Calçadas, quando existem, são estreitas, esburacadas ou obstruídas por postes e lixeiras mal posicionados. Essa negligência tem um custo alto: crianças e jovens confinados em casa, sem oportunidades de explorar o mundo ao seu redor, estão mais sujeitos ao sedentarismo, ao isolamento social e a problemas emocionais.
Estudos recentes demonstram que os ambientes urbanos influenciam precocemente as experiências e comportamentos infantis, impactando o brincar livre ao ar livre. Pesquisas indicam que elementos como a proximidade de áreas de lazer, a proteção contra o tráfego e a existência de espaços verdes promovem o desenvolvimento motor, cognitivo e emocional de crianças de 0 a 6 anos. Quando concebidos de forma inclusiva, tais ambientes transformam-se em autênticos laboratórios de aprendizagem, estimulando a criatividade, a resiliência e a autorregulação. Em geral, a resposta está na própria comunidade: os moradores e frequentadores conhecem as necessidades do espaço e sabem exatamente como aprimorá-lo para maximizar seu potencial.
Repensar as prioridades das cidades, investindo na criação e melhoria de espaços públicos de qualidade, deve ser uma prioridade para gestores e técnicos públicos. Calçadas largas, resultantes da redução de vagas de estacionamento, bem iluminadas para o conforto do pedestre e não apenas para a visibilidade do tráfego, arborizadas para oferecer sombra em dias quentes, ciclovias seguras integradas ao sistema viário e não apenas espremidas no meio-fio, e pequenos espaços de convivência criados a partir de áreas residuais ou glebas são soluções adotadas em diversos países. Esses espaços, que promovem saúde, coesão social e criatividade, são entendidos como essenciais, não meros complementos estéticos.
Estamos falhando em oferecer ambientes onde crianças e jovens possam ser livres, explorar o mundo e se desenvolver plenamente. Lugar de criança é na rua, não confinada em casa ou em áreas restritas, muradas. Cidades bem planejadas educam, incentivando autonomia, criatividade e convivência. Já as cidades que negligenciam os espaços públicos deseducam, limitando oportunidades e reforçando desigualdades. Cidades mal projetadas, malcriadas são hostis, aprisionando crianças e jovens em muros, privando-os do direito de brincar e estabelecer laços.
É hora de cobrar de prefeitos, governadores e do Presidente da República que a lei saia do papel. Vamos construir cidades que educam, não deseducam. Afinal, uma cidade que cuida de seus espaços públicos é uma cidade que investe no futuro de crianças e jovens.
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.