A relação entre arte, tecnologia e direitos autorais nunca foi tão complexa quanto nos dias atuais. Em um mundo dominado pelas big techs e plataformas digitais, os artistas enfrentam desafios sem precedentes para garantir a dignidade e a remuneração justa por seu trabalho. No novo mundo digitalizado, a inteligência artificial (IA) está transformando não apenas a forma como consumimos arte, mas também como os criadores são – ou não são – valorizados.
Imagem criada por inteligência artificialGemini/Google
A digitalização transformou profundamente a relação das pessoas com objetos físicos, como LPs, CDs, livros e pinturas. As gerações anteriores valorizavam o tátil, o tangível e o concreto, enquanto a atual, nativa digital, tende a ver muitos objetos materiais como desnecessários ou até ultrapassados. Embora a digitalização tenha ampliado o acesso à arte de uma maneira geral, deixando acessíveis a um clique acervos inteiros de grandes museus, álbuns musicais, filmes, fotografias, entre tantas outras produções artísticas, ela também desmaterializou a experiência, eliminando o “fetiche” pelo objeto físico. A tangibilidade virou arquivo digital e memória. Nada mais intangível.
Essa desmaterialização é preocupante, pois pode levar à desvalorização da arte como um todo. O fetiche não é a única questão, é a distância com a forma proposta pelos criadores que pode ser muito afetada. Por outro lado, em um mundo cada vez mais dominado pelo virtual, ganham outra dimensão o físico e o presencial, a experiência única e marcante de vivenciar a arte in loco, o teatro, a música. A arte em sua presença física, o palco, o cheiro da tinta à óleo, a tinta acrílica, a música ao vivo tudo isso precisa sobreviver. Nesse contexto, a arte de rua, como o grafite, adquire ainda mais pulsante importância, pela vida que propõe.
Neste intrincado cenário, entra a inteligência artificial, que tanto pode ser uma ferramenta muito útil quanto uma ameaça, quando substitui a subjetividade humana na criação artística, intelectual e científica. Se a IA passar a ser o cerne da criação (ou da produção de algo que chamamos criação), nós perderemos a essência do que significa ser um criador. O sujeito cartesiano precisa ser re-compreendido em tempos de IA.
A ciência e a arte dependem do processo criativo, que envolve esforço, suor e pensamento crítico. Quando a IA assume esse papel, corremos o risco de perder não apenas a qualidade das obras, mas também a dignidade dos criadores e a compreensão, por parte dos ouvintes, leitores e daqueles que se resolveu chamar de consumidores. É preciso levar em conta que a IA se alimenta e é treinada a partir da produção humana, que foi pensada, escrita, tocada, cantada, pintada, interpretada por artistas que, na maior parte das vezes, não estão sequer sendo consultados sobre o consentimento do uso de seus trabalhos e muito menos remunerados por isso. Isso agrava a questão. E a própria inexistência das fontes criadoras, que são a origem dos resultados produzidos pela IA.
As empresas de tecnologia avançam rapidamente, dominando mercados sem se preocupar com as consequências éticas ou sociais de suas práticas. Há, porém, elementos que não podem ser refundados sem que haja uma consulta à sociedade. Não se pode ignorar 500 anos de pacto civilizatório em torno da figura do criador e pretender zerar o sistema, estabelecer um ponto zero hermenêutico e criativo, ignorando toda as fontes e criadores anteriores à IA. O papel de regulador desses limites de atuação cabe aos governos, através de leis e políticas públicas que protejam e expressem os interesses da sociedade civil.
Os parlamentares e os artistas brasileiros têm se movimentado neste sentido. Criada em 2024, a Frente IA Responsável uniu a classe artística pela defesa dos artigos que versam sobre os direitos autorais no Projeto de Lei 2338/2023, conhecido como Marco Regulatório da Inteligência Artificial, e o Senado Federal aprovou o texto mantendo essas cláusulas de proteção. O PL está agora na Câmara, onde também será discutido e votado, e esperamos que os direitos autorais, nesse contexto, sejam assegurados também pelos deputados.
Destaca-se que o atual sistema de direitos autorais brasileiro ainda não está plenamente preparado para lidar com as inevitáveis mudanças que se anunciam. Embora tenha sido criado para proteger os criadores, o sistema muitas vezes esquece aqueles que lhe dão seu próprio nome: os autores e criadores em geral.
Hoje, a maioria dos artistas e criadores não consegue viver de seus próprios direitos autorais. Escritores, músicos, atores e artistas plásticos dependem de outras atividades para sobreviver ou mesmo são remunerados sem qualquer indicação ou presença de direitos autorais, já que a remuneração pelos direitos autorais é quase sempre insuficiente ou mesmo ignorada, A pandemia nos mostrou o quanto a arte é essencial e como pode ser uma forma de resistência e sobrevivência para mantermos nossa humanidade em tempos de desesperança, mas a vulnerabilidade dos artistas ficou evidente, com muitos deles dependendo de ajuda financeira para sobreviver.
A arte, inquestionavelmente, enriquece a sociedade. No Brasil, o setor da economia criativa é responsável por 3,11% do PIB e emprega cerca de 7,5 milhões de pessoas em mais de 130 mil empresas formalizadas, de acordo com dados do Governo Federal. Os artistas são peça fundamental deste cenário, que simplesmente não existiria sem a sua produção. Parece, no entanto, que ainda nos falta perceber que não faz sentido valorizar a arte sem valorizar os artistas.
É urgente repensar o sistema de direitos autorais e protegê-lo dos impactos reais das novas tecnologias na produção artística e cultural. Em um mundo cada vez mais digital e acelerado, a preservação da criação humana deve ser prioridade. A arte não é um luxo, é uma necessidade, e os artistas merecem viver com dignidade.
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