Clara Fagundes *
Colaboração para o Congresso em Foco
O Supremo Tribunal Federal (STF) vai definir, em Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) apresentada pela Associação Brasileira de Enfermagem (Aben) e pelo Psol, na segunda-feira (3), se profissionais de enfermagem, ou mesmo a própria gestante, podem administrar medicação para interrupção da gravidez nos casos previstos em lei.
Enfermeiras, obstetrizes e técnicas de enfermagem já integram equipes de assistência ao aborto legal em todo o Brasil e são maioria nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), onde a violência sexual, em especial contra a criança, deveria ser detectada.
Responsável técnica do Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei (PIGL) do Distrito Federal, a enfermeira Lígia Aguiar explica a atuação das equipes de enfermagem. “No atendimento às vítimas de violência sexual, é esperado que o profissional exerça o acolhimento ético, respeitoso, livre de julgamentos baseados em preceitos individuais, em valores individuais”, afirma.
“O atendimento precisa observar a definição dessa violência, se existe a necessidade de prestar cuidados em relação às lesões, a profilaxia contra infecções sexualmente transmissíveis e a profilaxia à gestação, a contracepção de emergência”, afirma. Clinicamente segura, a administração de medicamento é a etapa menos complexa da assistência.
“Também é papel da enfermagem, por ser linha de frente na coordenação do cuidado e ordenamento da rede na atenção primária e de espaços estratégicos da atenção ambulatorial, secundária e terciária, fazer articulação intrasetorial, costurando o diálogo entre diversos dispositivos da rede de proteção e garantia de direitos”, explica Lígia. Reconhecer e encaminhar casos de violência sexual é fundamental para garantia de direitos.
O obstetra Olimpo Moraes, diretor da Integrado de Saúde Amaury de Medeiros da Universidade de Pernambuco (Cisam/UPE), referência em aborto legal, reforça que “o aborto legal medicamentoso (misoprostol) até 12 semanas é procedimento seguro e não necessita nem mesmo de internação”. Poderia, inclusive, ser realizado em Unidades Básicas de Saúde.
“Nesses casos, eu concordo que a disponibilização de medicamentos por profissionais de enfermagem diminuiria uma das muitas dificuldades de acesso, e ajudaria a mudar a triste realidade de hoje, onde menos de 4% de meninas estupradas no Brasil conseguem o acesso ao aborto legal”, afirma Olimpo.
Diretrizes da Organização Mundial de Saúde consideram segura a autoadministração de medicamentos abortivos até a 12ª semana gestacional e a realização do procedimento por profissionais de enfermagem até a 14ª semana. “A ação busca ampliar os cuidados ao aborto legal, de forma que outros profissionais de Saúde, ou a própria mulher grávida, possam realizar o procedimento até 12 semanas de gestação”, explica Olimpo.
A cada 100 crianças grávidas por estupro no DF, somente 8 têm acesso a aborto legal
Apenas 34 crianças grávidas tiveram acesso ao aborto legal no Distrito Federal entre 2021 e 2023. No mesmo período, ocorreram 292 partos de meninas de 10 a 14 anos e foram registrados 975 estupros. Estudo publicado na última sexta (31) analisa dados do Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei (PIGL), serviço especializado de acolhimento a gestantes em decorrência de uma violência sexual, e conclui: o acesso é limitado.
O Código Penal prevê, desde 1940, a possibilidade de interromper gestação em caso de estupro. No caso de crianças abaixo de 14 anos, a violência é presumida. “A gestação decorrente do estupro de vulnerável é uma gestação decorrente de um crime. Existe uma defasagem em relação à detecção da violência sexual, uma dificuldade muito grande de toda a rede de atenção à saúde em reconhecer o estupro de vulnerável, compreender que qualquer relação sexual ou ato libidinoso com menor de 14 anos é previsto no Código Penal Brasileiro como estupro de vulnerável”, avalia a enfermeira Lígia Aguiar, responsável técnica do PIGL/DF e uma das autoras do artigo.
“Se a gente não tem a detecção no diagnóstico da gestação, da abertura do pré-natal, a gente não consegue viabilizar o acesso dessas crianças aos seus direitos, seja a manutenção da gravidez e criação, seja a entrega para adoção, seja a interrupção da gestação prevista em lei”, conclui.
Marginalizadas na ilha de alta renda
Os dados causam espanto na unidade federativa com maior renda domiciliar per capita do Brasil. “Ainda que o Distrito Federal tenha a maior renda, a gente tem também um índice de desigualdade muito grande. O perfil sociodemográfico dessas crianças que acabam vivenciando a gestação decorrente de violência sexual responde a esse perfil de desigualdade. São em sua maioria meninas negras, residentes na periferia do Distrito Federal ou no entorno, na região integrada de desenvolvimento”, explica a enfermeira.
“A gestação na infância e adolescência tem repercussões biopsicossociais muito importantes, desde a estrutura física e do funcionamento fisiológico, até todos os aspectos da sua socialização, escolarização e do seu desenvolvimento individual, profissional, acadêmico, contribuindo para a transmissão geracional da pobreza”, afirma Lígia Aguiar.
* É jornalista, especialista em Comunicação em Saúde (Fiocruz) e Comunicação e Desenvolvimento (IIMC/Délhi).