Um projeto de lei complementar que altera a Lei da Ficha Limpa é a nova aposta de parlamentares bolsonaristas para liberar seus direitos políticos a tempo de concorrer a presidente em 2026. A proposta, de autoria do deputado Bibo Nunes (PL-RS), reduz de oito para dois anos o tempo de inelegibilidade de um político.
Em 2023, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) condenou Bolsonaro por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação ao atacar, sem provas, as urnas eletrônicas em 2022. Com base na Lei da Ficha Limpa, ele está proibido de disputar um cargo público por oito anos, tornando-se o primeiro ex-presidente na história a perder direitos políticos em um julgamento na Corte. Caso não consiga reverter a decisão, ele só poderá disputar uma eleição em 2030.
Para o idealizador da Ficha Limpa, o ex-juiz eleitoral Márlon Reis, este é o maior ataque já feito à lei, aprovada em 2010 como projeto de lei de iniciativa popular para barrar a candidatura de políticos com condenações em tribunais. Mais de 1 milhão de pessoas assinaram a iniciativa.
Projeto tem aval de Bolsonaro
Bibo Nunes nega que a proposta seja casuística, mas reconhece que tratou do assunto com Bolsonaro. “Ele gostou da proposta, não tem como não gostar. Todos os partidos e políticos vão gostar porque oito anos é um absurdo. Político corrupto se pune com o processo por improbidade administrativa, com o Código Penal e com a Justiça comum. E não deixando-o inelegível por mais ou menos tempo. Dois anos são mais do que suficientes”, disse o deputado ao Congresso em Foco. “A mudança não é casuística, é para fazer justiça. Beneficia a todos, da esquerda à direita”, acrescentou.
Para liberar Bolsonaro a tempo de concorrer ano que vem, o projeto terá de ser convertido em lei até outubro. Embora precise do aval do presidente Lula para virar lei, por meio da sanção, o Congresso poderia derrubar o eventual veto, avaliam bolsonaristas. A iniciativa é vista como alternativa ao projeto de anistia para os envolvidos nos atos golpistas de janeiro de 2023.
A possibilidade de beneficiar centenas de outros políticos é usada como estratégia dos bolsonaristas para convencer os colegas a aprovarem a medida. O Projeto de Lei Complementar 141/2023 foi apresentado por Bibo logo após a condenação de Bolsonaro no TSE. A relatoria do texto foi distribuída em dezembro do ano passado ao deputado paranaense Filipe Barros (PL). Os deputados bolsonaristas querem discutir o projeto neste ano. Depois da gestão de Caroline de Toni (PL-SC), a presidência da CCJ é disputada agora por União Brasil e MDB.
Reação da sociedade
A discussão sobre a proposta está na pauta da reunião do próximo 13, em Brasília, do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), responsável pela Lei da Ficha Limpa. O objetivo é traçar uma contraofensiva popular contra o projeto.
Para o diretor do MCCE, Luciano Santos, há possibilidade de a proposta avançar se não houver pressão da sociedade. “Capitaneado pelo Centrão e pelo PL, o Congresso tem adotado um posicionamento de endurecimento nas questões penais, e de afrouxamento nas questões relacionadas aos politicos”, observou.
Na avaliação de Luciano, a proposta de Bibo tem apelo corporativista e abre portas para o ingresso do crime organizado em cargos públicos. “Criar, com o espírito de corpo, uma mudança na lei para salvar algumas figuras vai trazer para a política o crime organizado. Vemos esse tipo de iniciativa como uma luz piscando. Precisamos tomar muito cuidado”, afirmou Luciano, que é advogado eleitoralista. “No caso do presidente Lula, não houve modificação na lei [para torná-lo elegível]. Ele conseguiu reverter a inelegibilidade nos tribunais”, acrescentou.
Para Márlon Reis, o corporativismo dos parlamentares tende a favorecer que a iniciativa prospere. “Conseguimos barrar todas nos últimos 14 anos, desde que a lei foi aprovada. A pretexto de liberar a candidatura de uma pessoa inelegível, muitos congressistas verão nesse projeto a possibilidade de livrarem a si próprios. O Brasil nunca ocorreu um risco tão grande de perder a sua mais importante conquista democrática na luta por rigor no processo de seleção dos candidatos”, disse Márlon Reis.
Ele também considera a pressão popular fundamental para impedir que o texto avance no Congresso. “É uma iniciativa muito perigosa, pois movimenta não apenas o PL, mas muitos parlamentares que enfrentam riscos com a Lei da Ficha Limpa ou são pressionados por políticos de usas bases que estão inelegíveis ou na iminência de se tornar”, declarou.
O ex-juiz ressalta que o prazo proposto por Bibo Nunes é inferior aos três anos previstos pela Lei das Inelegibilidades antes da aprovação da Ficha Limpa. No ano passado, a Câmara e a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovaram um projeto que enfraquece a Lei da Ficha Limpa, reduzindo o tempo em que um político condenado deve ficar fora da disputa eleitoral.
Luciano Santos considera que o projeto de Bibo possa ser usado como moeda para facilitar a aprovação da proposta que encurta o período de inelegibilidade em tramitação no Senado. “No Congresso, ‘colocar o bode na sala’ é muito comum. Botamos o bode, depois a gente tira. O projeto que está no Senado é da deputada Daniele Cunha (União-RJ), filha do Eduardo Cunha, um dos beneficiados com a mudança. Pode ser uma estratégia para fazer uma liberação mais branda”, avaliou.
A atual legislação estabelece que o prazo para a contagem da inelegibilidade começa após o cumprimento da pena. Uma pessoa presa por quatro anos, por exemplo, está inelegível por 12 anos. Pelo texto em discussão no Senado, porém, essa contagem começará no momento da sentença. Isso abre precedente, por exemplo, para que um candidato fique elegível durante o cumprimento de sua pena. Defensores do projeto alegam que o atual critério é desproporcional, podendo deixar um candidato afastado de seus direitos políticos por mais de uma década.
Chegou a passar por unanimidade na CCJ do Senado em agosto do ano passado e aguarda deliberação dos senadores em plenário. Em nota divulgada à época, a Associação Brasileira de Eleitoralistas repudiou o afrouxamento na Ficha Limpa. Para a entidade, a aprovação do projeto viola o princípio da proteção da moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, consagrado na Constituição.
“A inaceitável proposta contida no PLP nº 192/2023 pretende extinguir a inelegibilidade “após o cumprimento da pena” na hipótese de condenação criminal. A inelegibilidade por 8 anos incidiria apenas após a condenação por órgão colegiado. Dessa forma, o projeto reduz drasticamente o prazo de inelegibilidade de condenados por crimes gravíssimos – como homicídios, estupros, tráfico de drogas, organização criminosa, entre outros crimes hediondos. Em alguns casos, indivíduos condenados por tais crimes nem mesmo ficariam inelegíveis, pois ao contar o prazo de 8 anos da condenação por órgão colegiado, e não do término da pena, esses indivíduos, ao término da pena, já teriam cumprido o prazo de inelegibilidade.”