Muros invisíveis: quando a exclusão dos indesejados se torna política urbana

Muros invisíveis: quando a exclusão dos indesejados se torna política urbana


Divisórias limitam o acesso a serviços essenciais de assistência terapêutica e a redes de apoio social, além de apenas dispersarem pessoas em extrema vulnerabilidade

WERTHER SANTANA/ESTADÃO CONTEÚDOVista do muro que a Prefeitura de São Paulo construiu na Cracolândia, no centro da cidade, para delimitar uma área e confinar os usuários de drogas
Vista do muro que a Prefeitura de São Paulo construiu na Cracolândia, no centro da cidade

A construção de muros e cercas em espaços públicos não se limita a uma barreira física, mas simboliza a exclusão social perpetuada por escolhas políticas. Essas estruturas segregadoras agravaram a marginalização de dependentes químicos, aprofundando a desigualdade social. Embora existam iniciativas de assistência social, a questão exige uma profunda revisão das políticas públicas, com foco na integração e justiça social, para que as cidades se tornem espaços verdadeiramente inclusivos.

Na cidade de Nova Esperança, o prefeito recém-eleito anunciou um projeto inovador. Ele planejou a construção de um grande muro no centro urbano. Diferentemente dos que costumavam afastar grupos indesejados, aquele seria “o muro da inclusão”. Na cerimônia de inauguração, discursou com entusiasmo. Afirmou que o muro não seria uma barreira, mas um convite ao acolhimento. Em seguida, completou dizendo que, atendendo à demanda por cidades cada vez mais humanas e mais verdes, o muro seria batizado de Barreira Viva.

Para reforçar o conceito de qualidade de vida, sustentabilidade e bem-estar urbano, a proposta incluía o plantio de heras ao longo de toda a estrutura pintada de verde. As trepadeiras, cuidadosamente escolhidas, prometiam transformar a muralha de tijolos em um painel natural vibrante, absorvendo poluentes, amenizando o calor e conferindo um aspecto mais harmonioso, digamos, à obra e valorizando o lugar. Durante o discurso, o prefeito destacou que, ao crescerem e cobrirem o muro, as heras simbolizariam a união entre o progresso e a natureza. Afirmou que a vegetação traria um abraço verde à cidade e às pessoas dentro dele, confinadas.

Em seu interior, ainda de acordo com o prefeito, todos poderiam conviver livremente e que a segurança, 24 horas, estaria de prontidão oferecendo seus serviços exclusivos, além de toda a estrutura necessária para todos aqueles que viviam na marginalidade. Não detalhou os serviços oferecidos pela prefeitura, pedindo paciência a todos, pois as “dúvidas seriam posteriormente esclarecidas”. E completou: “Confiem em mim!”. De perto, os comerciantes e habitantes do lugar assistiam aliviados. Aplausos efusivos ouviam-se a centenas de metros de distância vindos de seu grupo de apoiadores, oferecendo imagens únicas para posterior utilização em redes sociais.

Nota da colunista: como admiradora incondicional de Odorico Paraguaçu, personagem caricato de “O Bem-Amado”, de Dias Gomes, confesso, com certo desalento, que algumas das situações mencionadas nos parágrafos anteriores, embora satíricas em alguns aspectos, não pertencem apenas ao universo da ficção, mas refletem aspectos bem reais da sociedade atual.

A justificativa da segurança pública para a construção de muros oculta a verdadeira complexidade dos problemas sociais. Cada tijolo a mais no muro, cada grade instalada sob pontes e viadutos — como ocorre na cidade onde moro — objetivam dificultar a presença de dependentes químicos e materializam o que de mias sórdido considero como ação pública: os muros invisíveis que há muito dividem a cidade e tentam esconder os indesejados. Essas estruturas limitam o acesso a serviços essenciais de assistência terapêutica e a redes de apoio social, além de apenas dispersarem pessoas em extrema vulnerabilidade, que, sem suporte adequado e rede de apoio, não conseguem enfrentar os transtornos decorrentes do uso de substâncias químicas. Ao mesmo tempo, ampliam o abismo entre os chamados cidadãos plenos e aqueles relegados a uma condição de subcidadania, perpetuando o ciclo cruel em que garantias constitucionais são negadas.

De um lado, estão os que conseguem usufruir de tais direitos; de outro, estão os que sequer conseguem imaginar como seria vê-los reconhecidos em suas vidas. Ao invés de enfrentar as causas profundas dos problemas sociais, essas barreiras físicas obscenamente expostas na paisagem urbana tornam visível a indiferença diante de quem vive à margem social, reforçando desigualdades e consolidando um sistema onde privilégios permanecem restritos a poucos. Se não vejo, não existe.

A associação equivocada entre criminalidade e falta de segurança a partir da simples presença de dependentes químicos, pessoas que demandam reabilitação para a reintegração social, é reforçada por estigmas sociais, narrativas midiáticas conceitualmente equivocadas e uma compreensão limitada das causas estruturais que geram essa vulnerabilidade. O resultado é que a visibilidade dessas pessoas em espaços públicos provoca desconforto, mal-estar em alguns casos e até ojeriza por parte dos cidadãos, perpetuando preconceitos. O que fazer então? Invisibilizá-los ainda mais? Enquanto isso, políticas públicas repressivas agravam a exclusão e consolidam a percepção de ameaça. Essa relação equivocada desvia o foco das reais causas da desigualdade e dificulta a implementação de políticas integrativas que poderiam transformar essa realidade ao promover cuidado, segurança e direitos garantidos pela Constituição à população socialmente marginalizada, abordando de forma ampla as múltiplas dimensões da dependência química.

Os muros que isolam também servem como um lembrete das oportunidades perdidas para reverter a exclusão social por meio de uma abordagem integral do ser humano, a partir de um olhar multidisciplinar. Para além da dependência química, é fundamental promover a reintegração social por meio de apoio psicossocial, profissional, econômico e habitacional. Essas iniciativas devem ser voltadas à compreensão das especificidades das comunidades atendidas. A incorporação de práticas baseadas na cultura local, quando bem estruturadas, pode ser altamente eficaz ao responder às necessidades específicas dessas populações, ampliando as possibilidades de inclusão e transformação social.

A implementação de protocolos de atendimento claros e padronizados é essencial para garantir a qualidade e a eficácia no suporte a dependentes químicos. Esses protocolos devem ser multidisciplinares, envolvendo áreas como saúde, assistência social, geração de renda e habitação. Além disso, eles devem prever estratégias de acolhimento, redução de danos e reintegração social. Paralelamente, pesquisas apontam que a construção de um banco de dados integrado, reunindo informações sobre perfis socioeconômicos, condições de saúde, trajetórias de vida e acesso a serviços, é indispensável para compreender a realidade dessas populações, permitindo a formulação de políticas públicas baseadas em evidências. Com dados qualitativos e quantitativos atualizados e detalhados, torna-se possível identificar lacunas no atendimento, planejar ações mais direcionadas e acompanhar a evolução dos programas e ações, garantindo uma abordagem mais eficiente e humanizada.

A construção de muros como resposta aos desafios urbanos não passa de uma medida paliativa que ignora as raízes profundas da desigualdade e da vulnerabilidade social. Em vez de reforçar barreiras que segregam, é fundamental investir em políticas públicas que promovam a inclusão e garantam acesso efetivo à assistência social, à saúde e à reabilitação. A construção de uma cidade mais justa, segura e acolhedora exige um esforço coletivo que envolva o poder público, a sociedade civil e a iniciativa privada na busca por soluções sustentáveis e integradas.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.





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