Comissão da Verdade se multiplica em trabalhos como ‘Ainda Estou Aqui’

Comissão da Verdade se multiplica em trabalhos como ‘Ainda Estou Aqui’


Luiz Antônio Sansão, conhecido desde a adolescência como Lula, foi levado por militares na noite de 3 de dezembro de 1971. Por volta das 19h, cerca de dez militares invadiram a casa onde morava com seus pais, na cidade de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Derrubaram móveis, abriram gavetas e portas, destruíram objetos e o levaram à força, preso, com um capuz sobre a cabeça. Passados 54 anos, quem preserva o depoimento de Luiz é a filha, a jornalista e mestre em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) Luiza Sansão.

“Cobriam os olhos para a pessoa não poder, depois, dizer para onde ela estava indo, para não identificar o trajeto”, lembra Luiza. 

“Ele só se recorda de estar numa sala, de frente para um militar que o estava interrogando, fazendo perguntas sobre a militância dele e o ameaçando o tempo todo, dizendo que era melhor ele falar ali, porque, se ele não falasse, seria levado para Belo Horizonte, e no DOI-Codi de Belo Horizonte (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) as coisas eram diferentes”. 

Na época, Luiz tinha 22 anos de idade recém completados, era estudante do curso de Ciências Sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e militante da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), organização clandestina que agia contra a ditadura militar, instalada em 1⁠º de abril de 1964.

Comissão Nacional da Verdade


Brasília (DF), 15/01/2025 - O fotógrafo Luiz Antônio Sansão, de 74 anos, preso e torturado em 1971 por agentes da ditadura militar,  ao lado da esposa, Marilene Sansão, e da filha, Luiza Sansão. Comissão da Verdade se multiplica em trabalhos como 'Ainda estou aqui'. Foto: Luiz Antônio Sansão/Arquivo Pessoal
Brasília (DF), 15/01/2025 - O fotógrafo Luiz Antônio Sansão, de 74 anos, preso e torturado em 1971 por agentes da ditadura militar,  ao lado da esposa, Marilene Sansão, e da filha, Luiza Sansão. Comissão da Verdade se multiplica em trabalhos como 'Ainda estou aqui'. Foto: Luiz Antônio Sansão/Arquivo Pessoal

 O fotógrafo Luiz Antônio Sansão, de 74 anos, preso e torturado em 1971 por agentes da ditadura militar, ao lado da esposa, Marilene Sansão, e da filha, Luiza Sansão – Luiz Antônio Sansão/Arquivo Pessoal

A história de Luiz, hoje fotógrafo, com 74 anos de idade, é uma das centenas de memórias resgatadas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), que revelam situações de violações de direitos humanos durante a ditadura militar no Brasil. O depoimento ainda se assemelha em muitos detalhes à história de tortura e assassinato do ex-deputado federal Rubens Paiva, retratado no filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles. A responsabilidade pela morte do ex-parlamentar foi reconhecida pelo Estado Brasileiro, e o crime completou 54 anos nesta semana. 

O filme, adaptação do livro de mesmo nome escrito por Marcelo Rubens Paiva, filho do ex-deputado, recebeu o prêmio Globo de Ouro de melhor atriz na categoria Drama pela atuação de Fernanda Torres como Eunice Paiva, viúva do político. 

“É interessante porque quando assisti ao filme Ainda Estou Aqui, parecia que estava assistindo a história do meu pai, com a diferença de ele ter voltado para casa, e Rubens Paiva, não”, reflete Luiza. 

“Tenha dito! Por conta da Comissão da Verdade, tive elementos para escrever o livro Ainda Estou Aqui, e agora temos esse filme deslumbrante. E Dilma pagou um preço alto pelo necessário resgate da memória”, escreveu Marcelo Rubens Paiva em uma publicação no X, em novembro de 2024. 

As comissões da Verdade foram órgãos formados para investigar períodos de instabilidade política, em que houve suspensão dos direitos individuais e das normas democráticas. A CNV foi criada a partir da Lei no 12.528, em 18 de novembro de 2011, coincidindo com a promulgação da Lei de Acesso à Informação (LAI).

Estabelecida em 16 de maio de 2012, com um período determinado de 2 anos de funcionamento, posteriormente prorrogado até 16 de dezembro de 2014, a CNV examinou e esclareceu “as graves violações de direitos humanos praticadas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”. 

No período em que atuou, a Comissão Nacional da Verdade recolheu 1.121 depoimentos e 80 audiências públicas. O relatório final, entregue à então presidente Dilma Rousseff, em 10 de dezembro de 2014, identificou 434 mortes e desaparecimentos de vítimas do regime militar no país. Entre essas pessoas, 210 continuam desaparecidas. 


São Paulo (SP) 31/03/2024 - Ato 60 Anos do Golpe de 64 na frente do DOI-CODI em São Paulo.
Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil
São Paulo (SP) 31/03/2024 - Ato 60 Anos do Golpe de 64 na frente do DOI-CODI em São Paulo.
Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Ato 60 Anos do Golpe de 64 na frente do DOI-CODI em São Paulo – Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

“Nesse período, a comissão fez um trabalho bastante robusto e entregou o relatório final de forma bastante simbólica à presidenta. É simbólico também a relação com a própria Dilma, porque ela foi uma das pessoas que lutaram contra a ditadura militar em defesa da democracia. Em defesa de um projeto político para o Brasil, foi presa, torturada e sobreviveu à prisão”, avalia o professor do Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Gelsom Rozentino de Almeida.

Integrante da Comissão da Memória e da Verdade Luiz Paulo da Cruz Nunes, criada pela Uerj em 2024, ano do sexagenário do golpe militar, Almeida ressalta que um aspecto muito importante da CNV foi colaborar para a criação de outras comissões pelo Brasil, como as estaduais, municipais, regionais, sindicais e universitárias. 

“De forma bem ampla, todas têm o objetivo de analisar o contexto histórico e social das violações de direito e investigar e esclarecer os fatos que possam ter sido escondidos pelo Estado, porque a responsabilidade é do Estado, mas sem isentar a responsabilidade penal dos indivíduos”, explica.

O órgão, responsável por elaborar relatórios de recomendações, sugerir reformas estruturais e formas de reparações históricas, também resultou na criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), “conhecida sobretudo pela atuação de Eunice Paiva”, disse Almeida. 


Brasília (DF), 30.08.2024 - O ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), Silvio Almeida participa de cerimônia de reinstalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil
Brasília (DF), 30.08.2024 - O ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), Silvio Almeida participa de cerimônia de reinstalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil

Cerimônia de reinstalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) – Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil

“Ela tem uma papel fundamental nesse momento, porque é ela quem possibilita o início oficial da investigação de casos de tortura e assassinatos cometidos durante a ditadura e o reconhecimento dos desaparecidos como mortos pelo Estado. Não é por coincidência que o primeiro reconhecimento de óbito foi de Rubens Paiva, entregue a sua viúva”.

Desdobramentos

Professor de Direito Internacional no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da Comissão Nacional da Verdade de 2013 até a conclusão dos trabalhos do grupo, em 2014, Pedro Dallari explica que a demanda da sociedade, dos familiares dos mortos e dos desaparecidos e da comunidade internacional pressionaram o  Congresso Nacional a aprovar a lei que instituiu a CNV. 

“A comissão foi extinta legalmente, porque a lei que a criou estabeleceu um prazo para o relatório, que consolidou o resultado dos trabalhos de investigação. Tendo se tornado um documento oficial do Estado brasileiro, até hoje ele produz impactos na medida em que é base de informações muito seguras sobre o período investigado”, ressalta Dallari. “O fato de que até hoje, passados dez anos, o relatório continue a gerar impactos, mostra que foi um trabalho bem-sucedido”. 

Atualmente, o acervo da Comissão Nacional da Verdade está sob cuidados do Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro.


Brasília - Coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Pedro Dallari, fala de relatório preliminar que aponta uso indevido de instalações das Forças Armadas para tortura e mortes na ditadura (José Cruz/Agência Brasil)
Brasília - Coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Pedro Dallari, fala de relatório preliminar que aponta uso indevido de instalações das Forças Armadas para tortura e mortes na ditadura (José Cruz/Agência Brasil)

Coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Pedro Dallari – Foro: José Cruz/Agência Brasil

Para o professor Dallari, a grande contribuição da comissão foi “fazer o registro muito bem feito de fatos que tornam inquestionáveis os horrores da ditadura militar, o que tem sido muito importante para estimular a resistência à qualquer tentativa de retrocesso no Brasil”. 

Na cidade de São Paulo, por exemplo, o Projeto de Lei no 1.404, de 2023, determina a mudança dos nomes de prédios, rodovias e repartições públicas estaduais que homenageiam agentes da ditadura. A decisão tem como base o texto final apresentado pelos ex-coordenadores da CNV.

“São ações pequenas, mas muito importantes porque ajudam a realçar a memória sobre o que foi a ditadura no Brasil, então há muitos desdobramentos a todo momento. Agora, é evidente que há uma expectativa de que haja mais ainda. A Comissão Nacional da Verdade já alertava no seu relatório de 2014 a necessidade de uma reforma das Forças Armadas, o que não foi feito, e uma das consequências foi a tentativa de golpe de estado no final de 2022”, avalia Dallari.

Já o professor da Uerj Gelsom Rozentino de Almeida destaca, em especial, o trabalho do Comitê da Verdade do Amazonas, que elaborou o relatório O Genocídio do Povo Waimiri-Atroari.

Segundo as estimativas demográficas levantadas pelo Comitê, mais de 2.000 pessoas do povo Waimiri-Atroari morreram entre as décadas de 1960 e 1970, a maioria assassinada durante a construção da BR-174 (Manaus-Boa Vista) pelo regime militar. A estrada interliga os estados de Mato Grosso, Rondônia, Amazonas e Roraima à Venezuela.


Indígenas Waimiri-Atroari ou índios Kinja
Indígenas Waimiri-Atroari ou índios Kinja

Indígenas Waimiri-Atroari ou índios Kinja – Foto : Mário Vilela/ Funai

“Além dos índios sobreviventes, elementos do Comando Militar da Amazônia e da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) sabem os detalhes dessa tragédia humana. A crueldade que levou ao desaparecimento dessas milhares de pessoas nos vales dos Rios Urubú, Alalaú, Uatumã, Curiuaú, Camanaú e Jauaperí até o Baixo Rio Negro é especialmente grave porque ameaçou a existência de um povo, os Kiña, e há indícios de que levou ao completo aniquilamento de pelo menos um outro, os Piriutiti”, diz o relatório.

Demora

Em entrevista à Agência Brasil, Luiza Sansão faz uma pausa longa e respira fundo antes de ressaltar que os impactos da tortura na vida das pessoas é enorme. Retornando ao pai, ela conta que as horas sob controle dos agentes do regime militar impactaram completamente o psicológico do fotógrafo. “Uma coisa é fazer o processo de elaboração, como meu pai fez, mas jamais será confortável falar sobre isso. Jamais será algo que você comenta com leveza, esse assunto vem sempre com muita dor”. 

Foram 25 dias em Belo Horizonte, até 28 de dezembro de 1971, quando Luiz foi transferido para Juiz de Fora. “Ele foi torturado de diversas formas, apanhou muito, não deixaram ele dormir, o que é muito comum na tortura. Quando a pessoa não dorme, ela fica completamente destruída. Impedir que a pessoa durma por vários e vários dias faz a pessoa adoecer emocionalmente, então é uma forma de fazer ela falar”, diz Luiza, com a voz firme. “Como eles dizem, você ‘quebra’ a pessoa até ela não ter mais condições”.

A jornalista questiona a demora em estabelecer uma instituição para investigar os crimes cometidos durante o período ditatorial, já que a CNV foi criada há mais de duas décadas após o fim do governo militar no Brasil, em 1985. “O fato de ter sido tão tardia a instalação comprometeu muita coisa, porque infelizmente muitos arquivos vivos e documentais haviam sido destruídos há longa data. E os militares e os golpistas, os que puseram a mão na massa do horror, já estavam muito idosos ou já tinham morrido”.

Assim como Luiza, Dallari concorda que o ideal seria a CNV ter sido construída ainda no Século 20. “É evidente que muitas informações se perderam, muitas pessoas que poderiam ter prestado depoimentos importantes já tinha falecido, então o ideal seria que a comissão tivesse sido instalada logo depois do final da ditadura, mas as circunstâncias históricas brasileiras não possibilitaram isso e ela acabou sendo formada muito mais tarde, o que gerou mais dificuldade na apuração”. 

“Políticas de memória, verdade e justiça são fundamentais para que a história não se repita, para que a barbárie não se repita”, defende Luiza. “Meu pai é uma pessoa de virtudes muito profundas, muito especiais, e quando penso na forma que ele foi tratado, como ele poderia ter morrido e, no caso, eu e o meu irmão não teríamos sequer vindo a este mundo, sempre me gera uma revolta muito grande. A mim e ao meu irmão”.

Debate

Gestora de Memória no Instituto Marielle Franco e mestre em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Gabrielle Abreu observa que desde o encerramento da CNV, a memória da ditadura militar não era colocada de forma tão central do debate público como após a estreia do longa Ainda Estou Aqui

“Esse é um dos grandes trunfos do filme. Essa oportunidade coletiva que estamos tendo de comentar, de debater esse tema mais importante do que nunca agora, depois do 8 de janeiro e da eleição de Jair Bolsonaro, uma figura pública que construiu sua vida política valorizando a ditadura, inclusive tecendo comentários muito maldosos e desrespeitosos diretamente contra a família Paiva”.


Rio de Janeiro (RJ), 03/04/2024 – A diretora do Arquivo Nacional, Gabrielle Abreu durante sessão de fotos à Agência Brasil, na instituição, no centro do Rio de Janeiro. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Rio de Janeiro (RJ), 03/04/2024 – A diretora do Arquivo Nacional, Gabrielle Abreu durante sessão de fotos à Agência Brasil, na instituição, no centro do Rio de Janeiro. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Gestora de Memória no Instituto Marielle Franco, Gabrielle Abreu – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

O professor da Uerj Gelsom Rozentino de Almeida avalia que a Constituição Federal de 1988 não é suficiente para defender o sistema democrático no país sem a mobilização da sociedade. Após o impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016, que Almeida define como um “golpe jurídico-parlamentar contra uma presidente legitimamente eleita”, o país teve um avanço da extrema direita e de elementos antidemocráticos que resultaram na eleição de Jair Bolsonaro.

“Posteriormente, ficou claro que o ex-presidente não pretendia deixar o poder em caso de derrota. Ele travou várias tentativas de golpe, desde aquela manifestação famosa de 7 de setembro até resultar na tentativa violenta de golpe em 8 de janeiro de 2023. É para ficar atento, porque temos uma tradição de golpes de estado no Brasil, golpes que vêm desde o fechamento da Assembleia Constituinte em 1824 por Dom Pedro I”.

“Estamos vivendo uma oportunidade muito especial, de sermos confrontados coletivamente, enquanto sociedade, com essa temática através da arte, através da cultura, através de uma personalidade como a Fernanda Torres, que para além de tecnicamente impecável, é uma figura super carismática, o que facilita muito com o que tema seja debatido, disseminado”, defende Gabrielle Abreu. 

* Estagiária sob supervisão de Vinícius Lisboa



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