Os principais meios de comunicação, com o noticiário ufanista sobre a vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro, perdeu excelente oportunidade de levar às novas gerações esclarecimentos sobre a história recente do país, a partir do martírio de Rubens Paiva, cuja trajetória política retratada no livro “Ainda estou aqui”, de seu filho, o escritor Marcelo Rubens Paiva, serviu de base ao roteiro do filme. Uma pena. Porque é nesses – raros – momentos que a mídia tem a grande oportunidade de sair do rame-rame cotidiano e em vez apenas de INFORMAR, cumprir seu outro papel, mais nobre ainda – o de FORMAR o leitorado e a audiência através de análises, rememorações e reflexões bem fundadas sobre aspectos relevantes da história. Tais como os fatos ocorridos em 1964 e depois dele, com suas consequências que podem ser vistas até hoje. Saudosistas dos anos de chumbo não apenas consideram normal tudo o que aconteceu mas, o que é pior, defendem os algozes de Rubens Paiva e de centenas de outros brasileiros que passaram pelas câmaras de tortura ou foram friamente assassinados.
Na maioria dos veículos, o noticiário da vitória de Fernanda Torres limitou-se ao estouro dos champanhes. Pouco ou quase nada se disse sobre a matriz inspiradora do filme de Walter Salles que, no mínimo, deveria servir como advertência em defesa dos ideais democráticos. Claro que não li, ouvi ou assisti o noticiário de todos os veículos sobre a vitória da atriz brasileira. Seria impossível. Mas acredito ter visto, lido e ouvido o suficiente para afirmar, por exemplo, que, até onde eu saiba, poucos foram os que aproveitaram o ensejo para contar o que de fato aconteceu. Só pra citar um fato que poucos veículos lembraram: a cusparada que o então deputado Jair Bolsonaro deu no busto que homenageia o deputado Rubem Paiva, na entrada do Anexo 2 da Câmara. O neto dele, Chico Paiva Avelino, relata: “Em 2014, a Câmara dos Deputados fez uma tocante homenagem ao meu avô, Rubens Paiva: inauguraram um busto com a sua imagem em função de sua incessante luta pela democracia – causa pela qual ele literalmente deu a vida. Minha família foi em peso. Emocionadas, minha mãe e minha tia fizeram discursos lindos e orgulhosos sobre a memória do pai. No meio de um deles, fomos interrompidos por um pequeno grupo que veio se manifestar. Era Jair Bolsonaro, junto com alguns amigos (talvez fossem os filhos, na época eu não sabia quem eram), que se deu ao trabalho de sair de seu gabinete e vir em nossa direção, gritando que ‘Rubens Paiva teve o que mereceu, comunista desgraçado, vagabundo!’. Ao passar por nós, deu uma cusparada no busto. Uma cusparada!”.
Sem esquecer, é claro, que o mesmo Jair Bolsonaro homenageou em plenário, pelo microfone da Câmara, com transmissão pelas Rádios e TVs Câmara e Senado, em rede nacional, o maior torturador do regime militar, coronel Brilhante Ustra, durante a votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Sob a inspiração do mesmo Bolsonaro os estúpidos manifestantes do fatídico 8 de janeiro de 2022 invadiram prédios públicos e destruíram obras de arte. Havia, sim, muita gente idosa ali. Mas a maioria – a maioria! – era gente nova, que não teve sequer a oportunidade de conhecer os reais valores da democracia e que foi simplesmente cooptada pela ideologia fascista da extrema-direita.
Tudo está interligado. Inclusive a volta de Trump à Casa Branca, com a qual a direita brasileira sangrenta ganhou sangue novo. Desde a eleição do republicano, aliados de Bolsonaro comemoram, na certeza de que Trump é inspiração para a reversão da inelegibilidade do ex-presidente por entender que ele tem grandes chances na eleição de 2026. E, tal como Trump prometeu que vai anistiar os invasores do Capítólio, esperam pela anistia aos vândalos do 8 de janeiro aqui.
Não custava nada aos meios de comunicação – jornais, sites, blogs, emissoras de rádio e tv – dedicarem algum espaço ou tempo para relatar que Rubem Paiva era deputado em 1964 pelo PTB paulista, e apoiava o governo de João Goulart. Foi cassado pelo Ato Institucional nº 5, posteriormente preso, torturado e assassinado. Seu corpo foi esquartejado e descartado em alto mar. Quando me refiro a esses fatos em sala de aula, vários estudantes universitários se surpreendem, por nunca terem sido apresentados a eles. E por isso desconhecem total ou quase completamente a história recente do país. Quando do falecimento do cineasta Vladimir Carvalho, fiz questão de exibir para meus alunos da UnB o documentário dele, “Barra 68”, que relata as invasões sofridas pela Universidade de Brasília no final dos anos 60 e início dos anos 70, e que tiveram como consequências estudantes presos, perseguidos, desaparecidos como Honestino Guimarães. A maioria desconhece tais fatos. Ora, se desconhecem o que ocorreu ali mesmo onde estudam hoje, como exigir que conheçam a história recente do país? No geral, as escolas de nível médio ficam em Pedro Álvares Cabral, Pedro Primeiro, Pedro Segundo e olhe lá. Se perguntar, por exemplo, sobre a Revolução de 30, o que se ouvirá, com raras exceções, é um retumbante silêncio.
E se há uma crise de falta de leitura pela avassaladora invasão das redes sociais, uma saída é o aproveitamento de momentos como o da premiação de Fernanda Torres para a rememoração ou apresentação dos fatos que culminaram com o surgimento de uma extrema-direita golpista, vândala e assassina no Brasil. Tão ou mais sanguinária e explosiva do que a que tomou de assalto o poder em 64.
Se a imprensa quiser mesmo reaver seu papel e recuperar tiragem e audiência – e não ficar apenas chorando no muro das lamentações, esse é um dos caminhos: sair do simples rame-rame informativo e contextualizar os fatos, situando-os numa perspectiva histórica, capaz de trazer luzes frescas que impeçam a proliferação do ideário extremista que cresce a olhos vistos. Ora, se no país mais importante do mundo um extremista como Donald Trump mandou lavar o terno para seu retorno ao poder, por que aqui não poderia acontecer a mesma coisa daqui a um ano, com Bolsonaro ou algum preposto dele?
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