Uma coisa é certa: o segundo governo de Trump testará todos os limites das instituições americanas e do Estado Democrático de Direito. Elas resistirão? Para aprofundar essa análise, entrevistei a Dra. Liane Groth Hulka*.
Dra. Hulka, quais são suas expectativas em relação a este segundo mandato de Trump, considerando o que tivemos no primeiro?
Trump buscará retribuição contra seus inimigos e permitirá que aqueles que lhe foram leais realizem suas agendas de usar o governo para ganhos pessoais e/ou corporativos. Ele agora tem mais confiança de que pode fazer qualquer coisa e escapar da responsabilização por meio da imunidade garantida por seus indicados na Suprema Corte dos Estados Unidos.
Nos EUA, os Estados têm grande autonomia. Alguns, por exemplo, garantem o direito à justiça climática em suas legislações estaduais, como Havaí, Califórnia e Massachusetts. Isso vale para os direitos reprodutivos também. O que falta na Constituição Federal, alguns Estados garantem. Talvez o modelo norte-americano de descentralização e o grande poder legislativo atribuído aos Estados sejam um grande instrumento de resistência contra Trump. Comparando com o Brasil, se fosse como o federalismo brasileiro, seria impossível. Você pode comentar essa ideia?
Nos Estados Unidos, existem algumas proteções para a autonomia e os direitos dos Estados; no entanto, nem todos possuem constituições e leis estaduais suficientes para servir como resistência à agenda de Trump. Muitas legislaturas estaduais nos EUA estão manipuladas por gerrymandering, de forma que os legisladores eleitos não refletem a vontade do povo devido à maneira como os distritos foram desenhados para garantir uma maioria republicana. Isso é uma barreira estrutural séria em muitos Estados, incluindo o meu, Indiana. Alguns Estados podem buscar proteção contra legislações restritivas, como as relacionadas ao aborto, por meio de iniciativas ou referendos estaduais; entretanto, Indiana, por exemplo, nem sequer possui esse direito, o que impede que a vontade direta do povo tenha voz.
O estilo de liderança de Trump e dos republicanos MAGA não deixa muito espaço para dissidência, mesmo dentro do Partido Republicano. É um estilo autoritário e autocrático que prega “ou você está comigo 100% ou está fora”. Trump e seus seguidores não hesitam em atacar outros republicanos conservadores tradicionais, como Liz Cheney, por exemplo. O “partido MAGA” faz com que todos sigam o mesmo manual. Acho que os EUA estão caminhando para uma democracia (baseada no voto popular, freios e contrapesos), mas com características oligárquicas em 2025. O modo como Trump está escolhendo seus Secretários de Estado diz muito sobre isso. Com Musk, por exemplo, vemos os interesses privados de um grupo específico de pessoas muito ricas.
Sim, a maioria dos americanos pró-democracia e anti-MAGA acredita que nosso país acabou de eleger um líder autocrático. Não entendemos bem sua afeição por ditadores antiocidentais, como Putin e Orbán, ou suas escolhas para posições importantes no gabinete. Os EUA nunca foram fundados sobre princípios verdadeiramente equitativos, então nunca foram uma forma perfeita de democracia. Presidentes são eleitos por meio do colégio eleitoral, não pelo voto direto popular, e cada Estado, independentemente do tamanho, tem dois senadores. Com a decisão do Citizens United permitindo dinheiro ilimitado na política e a perpetuação da mídia de direita, a democracia americana sofreu um golpe sério. Esse desmantelamento não começou em 2016; as barreiras constitucionais começaram a enfraquecer já nos anos 1980 e 1990. Agora, a reeleição de Trump significa que nosso sistema democrático está em sério perigo.
Quem você acha que pode resistir a Trump? Além dos Estados que não são governados por republicanos, é claro. A sociedade civil organizada, ONGs? Ou uma perspectiva mais litigiosa, como organizações como a ACLU? Nesse cenário de Trump com maioria no Congresso, Senado e Suprema Corte conservadora, será realmente um desastre? Os democratas podem fortalecer alianças com independentes e republicanos descontentes que se opõem à liderança de Trump?
Acredito que todo americano que se preocupa em preservar o que resta da democracia nos EUA deve continuar responsabilizando Trump e sua administração por suas ações. O Comitê Nacional Democrata (DNC) pode ser uma forma eficaz de comunicar a resistência, se feito de maneira organizada e estratégica. Precisamos de alguém que tenha feito o trabalho árduo e saiba organizar e comunicar, como Ben Wickler, ex-presidente do Partido Democrata de Wisconsin. Os democratas precisam começar a operar com planos estratégicos de curto e longo prazo. Cada pessoa pode ajudar a mudar corações e mentes, porque mudar a cultura vai além de escolher quem concorrerá a cargos políticos. Doar para ONGs não será suficiente desta vez.
“Precisaremos organizar comunidades por todo o país para mudar a cultura dos EUA. Não se trata apenas de economia – são as políticas de identidade que impulsionaram a campanha de Trump. Precisamos encontrar mensageiros eficazes para levar a mensagem de que, como coletivo, seremos mais fortes juntos do que quando vemos os outros como a razão de nossas dificuldades.
Como os democratas podem combater campanhas de desinformação que podem surgir sob uma renovada presidência de Trump?
Essa não é uma resposta simples e provavelmente será tema de muitos livros. Podemos começar encontrando comunicadores que compartilhem valores de bem comum para alcançar os americanos onde estão. Esses comunicadores podem estar na mídia tradicional ou podem ser vizinhos no Instagram. Eles precisarão educar mais do que qualquer coisa, e devemos continuar informando os americanos em tempo real sobre o que está acontecendo e mostrando que há outras maneiras de resolver problemas. Também precisamos construir uma rede – e financiá-la será crucial.
Que medidas devem ser tomadas para responsabilizar Trump por ações relacionadas ao ataque ao Capitólio em 6 de janeiro ou outras investigações em andamento?
Trump nomeou juízes federais que já se recusaram a responsabilizá-lo por suas ações em 6 de janeiro. Não sei quanto conseguiremos extrair do passado, mas podemos continuar informando e educando o povo americano por meio dos canais onde recebem informações, mostrando o que está em jogo a cada passo desta presidência. Devemos agir como um partido de oposição e não como se esta fosse a política usual. Não podemos deixar nada ser varrido para debaixo do tapete. A partir de 2026, com as novas eleições legislativas e o início de outra primária presidencial democrata, podemos começar a traçar um novo caminho com novos mensageiros. Mas, primeiro, o povo precisa ser informado de maneiras que nunca foi antes, e precisamos ser mais criativos e estratégicos para alcançá-los. Não podemos apenas falar de política com pessoas que não gostam ou não entendem de política. Aqueles que acreditam em ideais democráticos precisam sair de suas zonas de conforto e se engajar no trabalho difícil e necessário.
* Dra. Hulka é mãe, advogada e, serviu na administração do último governador democrata eleito de Indiana O’Bannon. Em 2017, Liane cofundou o Hoosier Women Forward, um programa de liderança política e cívica criado para preparar mulheres democratas para posições de destaque no serviço público, onde atualmente atua no Conselho Diretor. Ela também exerceu um mandato de quatro anos como Presidente do Distrito 5 do Partido Democrata de Indiana. Em 2022, Liane cofundou a Our Choice Coalition, Inc., um comitê de ação política dedicado a eleger candidatos em Indiana que defendam os direitos e o acesso à saúde reprodutiva, incluindo o aborto. Seu estado natal, Indiana, foi o primeiro a proibir ativamente o aborto após a decisão Dobbs da Suprema Corte. Além disso, ela presta consultoria para campanhas políticas, referendos escolares e estratégias de advocacia de organizações sem fins lucrativos. Também é comentarista política local, com participações na Fox-59 e WISH-TV.
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