Quanto vale uma vida? | Jovem Pan

Quanto vale uma vida? | Jovem Pan


Embora priorize a eficiência econômica, modelo adotado pelo poder público frequentemente desconsidera aspectos essenciais como dignidade e igualdade

CRIS FAGA/DRAGONFLY PRESS/ESTADÃO CONTEÚDOManifestantes protestam contra a violênciae a letalidade policial na cidade de São Paulo, em frente à Catedral da Sé
Manifestantes protestam contra a violênciae policial na cidade de São Paulo, em frente à Catedral da Sé

Cenas do cotidiano da cidade de São Paulo. Um policial militar arremessa uma pessoa de um viaduto durante uma abordagem que deveria ser apenas rotineira, um gesto que, aos olhos de quem busca segurança pública e proteção à integridade física e patrimonial, reflete de forma perturbadora o valor atribuído à vida humana por aquela corporação.

Sob o viaduto, uma mãe recolhe trapos, filhos, tralhas e o pouco que resta de sua barraca improvisada enquanto a tropa de choque da Polícia Militar, veículos da assistência social, caminhões de apoio à remoção e carros-pipa, acompanhados por subprefeitos e assessores, supervisionam a faxina que reduz sua existência a lixo urbano, utilizando jatos de água para apagar sua presença, tratada como sujeira que empesteia os espaços públicos da cidade.

Uma mulher morre atropelada por um coletivo enquanto voltava para casa. De um lado, as manchetes, carregadas de etarismo, insinuam nas entrelinhas que sua idade, associada a estereótipos de fragilidade e lentidão, teria contribuído para o ocorrido. Nas declarações oficiais, a prefeitura segue a mesma lógica, transferindo a responsabilidade para a vítima e reforçando o hábito de culpar aqueles que, mortos em sinistros de trânsito, não podem mais se defender. Alegou-se que ela não olhou para os dois lados e caminhava devagar demais, desviando o foco da segurança viária, uma responsabilidade municipal que inclui o dever de criar um conjunto de medidas, políticas, infraestruturas e ações destinadas a reduzir o risco de mortes no trânsito e proteger a integridade física de todos os usuários das vias públicas. Caminhar transformou-se em um ato de coragem.

Qual é o valor atribuído a uma vida humana no contexto das decisões públicas? Coisificamo-nos. A monetização relacionada ao valor da vida humana existe há tempos. Nenhuma novidade. Tornamo-nos peças de uma engrenagem complexa que mantém a funcionalidade de um sistema urbano, onde nosso valor é determinado pelo papel desempenhado na máquina da cidade. Embora disfuncional para os cidadãos, suas instituições transformam-se em moedores de mentes e vidas, triturando histórias e reduzindo pessoas a estatísticas e justificativas econômicas. Nesse processo, a dignidade humana é eliminada, e decisões públicas que deveriam proteger e valorizar a vida priorizam a eficiência e o custo-benefício, perpetuando uma desumanização que serve à máquina pública, não aos seres humanos que a constituem.

Encantados por jingles (peças criadas para promover políticos alçados à condição de produtos a partir de músicas que grudam no cérebro das pessoas) e imagens cuidadosamente moldadas, sejam elas fruto de manipulação digital ou de intervenções estéticas — dentes impecáveis e harmonizações faciais —, cidadãos desavisados acabam escolhendo para cargos públicos aqueles cuja aparência, construída a partir de diretrizes existentes em manuais das agências de marketing, sobrepõe-se à ética humanista e social que deveria orientar suas ações e decisões. Que valor dá à vida o político que você escolheu para representá-lo? Após eleitos, mandam às favas o compromisso com a dignidade humana, o interesse coletivo e a valorização da vida como diretrizes de governo.

A monetização da vida humana é um conceito histórico utilizado em políticas públicas para atribuir um valor financeiro à preservação de vidas. Por meio de cálculos como o Valor de uma Vida Estatística (VSL), governos avaliam os custos e benefícios de medidas preventivas, como melhorias na infraestrutura viária ou ações de segurança no trânsito. Embora priorize a eficiência econômica, esse modelo frequentemente desconsidera aspectos essenciais como dignidade e igualdade. Em países nos quais a população exercita ativamente a cidadania, cobrando das autoridades por eles eleitas ações condizentes com a dignidade, a monetização da vida humana tende a ser confrontada por políticas públicas mais inclusivas, que valorizam a segurança, a igualdade e o respeito aos direitos fundamentais acima de cálculos meramente econômicos.

Aquela pessoa arremessada ponte abaixo não passa de um sujeito invisível na estrutura social. Diante do trabalho policial, é reduzida a um corpo, carregando o estigma de pária ou de algo descartável, desprovido de valor. Conceitos pautados no respeito à dignidade humana e à integridade física passam longe, muito longe, da lógica que prioriza a desobstrução do viaduto. A manutenção do fluxo viário torna-se prioridade, pois o tempo é considerado um recurso precioso sob a ótica da produção econômica urbana.

A mãe que recolhe trapos, filhos e pertences vê sua existência reduzida a lixo descartável, enquanto o jato d’água apaga não apenas sua presença, mas qualquer vestígio de humanidade que ainda resista ao esmagamento imposto pela máquina institucional. Sob o pretexto de garantir a impecabilidade das ações de zeladoria urbana, gestores públicos redefinem a limpeza das ruas, deixando claro que priorizam uma cidade esteticamente limpa em detrimento de uma socialmente justa. Ignoram solenemente a necessidade de produção de políticas que incluam e protejam os cidadãos, transforma o custo da zeladoria urbana em mais uma forma de desumanização.

E, finalmente, a mulher atropelada por um coletivo enquanto voltava para casa é responsabilizada por sua morte tanto pelas manchetes dos jornais que a declaram idosa quanto pela prefeitura que a chamou de distraída. Essas cenas expõem escolhas feitas por governos — ou a falta delas. Decisões negligentes, omissões e atos de violência refletem uma clara priorização de alguns em detrimento de outros. Quando a vida humana é medida pelo que produz, consome, origem, cor da pele, status social ou pelo espaço que ocupa, ela se torna uma moeda de troca. Afinal, qual é o verdadeiro significado do valor de uma vida quando, nas cidades, algumas pessoas são reduzidas a estatísticas enquanto outras são vistas como obstáculos a serem eliminados em nome da preservação do “bem comum” — seja lá o que isso realmente signifique?

Essas histórias não são casos isolados; elas são sintomas de um sistema que persiste em esquecer que dignidade, segurança e respeito não podem ser mensurados ou negociados. Enquanto aceitarmos que a vida de alguns vale menos que a de outros, jamais será possível construir uma sociedade onde todos possam caminhar, viver e existir sem medo de serem apagados, ignorados ou descartados. Tornamo-nos objetos substituíveis, cujo valor é uma mera extensão de um sistema que, ironicamente, deveria servir à humanidade.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.





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